Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Vigília



A velha sentada na varanda suspensa de madeira não mexe mais os olhos para ver o que acontece no chão, cinco metros abaixo. Ela não respira. Para não sentir o cheiro da podridão que vai além das fezes dos animais e do mijo dos bêbados e da porra dos homens que trepam com as prostitutas no beco e das línguas que envenenam histórias nos ouvidos fracos e do tabaco vagabundo dos operários. Ela não está morta. Mas é como se estivesse. E talvez esteja. Não da morte que deita no caixão e põe nas narinas algodões para aparar os fluidos fétidos do corpo. Ela morreu de inexistência. Do dia após dia em que ganhar nunca foi opção. Ela perdeu. Tudo. Os dentes da boca infectada; os cabelos brancos fracos e finos que os anos trouxeram antes ainda da velhice; o tesão que aliviou tantas noites cansadas de dias de trabalho insano; os filhos que não vingaram na barriga por causa da fome e das doenças; o companheiro que foi embora deixando uma cria doente para ela alimentar e quatro tíquetes de refeição que recebeu em pagamento por um serviço de pedreiro. Além da cria que virou anjinho, ainda ficou para trás uma solidão que também tinha fome. A única que ela conseguiu nutrir até que os farelos se acabaram. 
Inerte na varanda. É assim que ela vive. Na cabeça, um pano encardido para esconder a calvície. E um vestido preto que não é de luto, mas da sobra dos sacos de caridade da igreja. Um dos olhos já quase não se abre; e o outro não se importa. Ela não sente nada. Nem alívio. Ao lado, um prato de comida que alguém traz quando pode. Vazio. E uma caneca de água pela metade. Ela sempre come tudo. E bebe aos goles. Deixa que mãos estranhas a banhem numa bacia de água fria, a vistam com o mesmo vestido preto, envolvam a sua cabeça no mesmo pano encardido, e a levem de volta à cadeira na varanda. Ela come e bebe porque quer ficar forte para continuar a vigília. E se esquecer de tudo o que fede e grita cinco metros abaixo. Quer se aprumar para caminhar com a morte quando ela chegar. Na direção do céu que só existe bem longe. Lá, ela vai rever a cria, o pai funileiro, a mãe costureira. Gente que a saudade desassossegada nunca deixou partir do pensamento. E vai ganhar vestido novo. Todo branco. E uma tiara brilhante para prender os cabelos pretos, longos, cheios. Essas coisas que só Deus dá. No céu. 

Share


Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


11 comentários:

Esse texto é de arrancar lágrimas das pedras, Cínthia. Mexe com minhas vísceras, Cinthia, que é onde sinto minhas emoções mais fortes. Parabéns!

Cínthia, você representa toda a paixão e respeito que tenho pela literatura! amo seus textos, suas personagens, sua pena implacável! Perfeito!!!!

Obrigada, amigos queridos Cecilia e Emerson! A opinião dois dois me é muito cara!

Adorei! Emerson, obrigada por ter mostrado este texto, viajei nos sentimentos desta senhora. Parabéns, Cinthia Kriemler!

Estes textos de velhos sofridos já dão um livro, hein, Cinthia? Uma riqueza literária de muita dor. Parabéns.

Estes textos de velhos sofridos já dão um livro, hein, Cinthia? Uma riqueza literária de muita dor. Parabéns.

Apenas recentemente aproximei-me das publicações desta revista, virei leitor assíduo, especialmente dos texto sempre marcantes de Cinthia Kriemler. Sinto-me demasiadamente feliz e enriquecido por tudo que tenho lido. Muito obrigado, Cinthia! Muito obrigado, SAMIZDAT! Estou em nova órbita e lhes responsabilizo!

Obrigada, Alynne, Fátima e Maria Amélia!

Muito obrigada, Wanderson Gomes! Muito feliz!

Postar um comentário