Não
sabias ainda o que ia suceder.
Não
podias prever.
Preparavas
um caldo de osso de borrego com nabiça e tinhas ouvido a porta de entrada e,
já nem davas por isso, tinha-se-te descompassado o modo de sorver o ar que respiravas.
O
corpo dele ficou a ocupar a porta que da cozinha levava à salinha de entrada
que servia também de sala de jantar e sala de ver televisão, e que era onde deitavas
a mais velhinha que, quando tinham alugado o T1, nem tinham pensado em fazer família,
que a bem dizer nem tu nem ele nunca tinham pensado coisa nenhuma, apaixonados,
doidos de quererem o corpo um do outro, e casaram poucos meses depois da noite
em que se tinham visto pela primeira vez e tu nunca tinhas ouvido dizer dele, e
havia tantos outros no grupo de colegas de trabalho e amigos, mas ou
seria o destino a comandar-te ou terá sido o modo de ele te ter olhado, ou
terás sido tu insinuante e ele nem mais te deixou, que assim to repetiria: “essas
mamas redondas deram comigo em doido”; e tu embevecida do seu porte atlético, do
cabelo já a ficar grisalho nas fontes apesar de tão jovem; ou terá sido o modo
como te colocou a mão no ombro a pedir, soprando-te desasossegos em cada
sílaba, a boca bem chegada ao lóbulo da tua orelha esquerda: “passas-me esse
copo, por favor”. Ficaram nesse transe de estar apaixonados, ainda, e ainda
mais, depois de terem passado juntos o início desse dia e o dia inteiro que era
um dia de trabalho e ele terá dito: ”que se lixe” e disseste também tu, ou nenhum
disse, ficaram sem sequer dar acordo do nascer do sol nem do cair da noite, tu
e ele a rebolar desejos no tugúrio que era o quarto onde ele vivia emigrante de
uma outra zona do país a fazer um serviço para a empresa onde era soldador.
E
depois passaram a encontrar-se, a viver juntos quase sempre, até ao dia em que disseram um ao outro: “e se juntássemos os haveres
que não temos?” e a rirem alto para o ar quente dum final de Maio. E tu terás olhado
as casas que assomavam na outra margem a esconderem o bairro em que tinhas
vivido até seres a namorada dele: tu a querer esquecer, a querer lembrar apenas
que agora serias tu a comandar a tua vida.
Casaram
sem cerimónia nem padrinhos nem convidados: “apenas eu e tu” tinhas dito, e em
casa participaste que não voltavas num bilhete que deixaste na sala, e nenhum
deles, mãe e padrasto, terá acreditado, tanto que nunca te procuraram, nem
quando deixaste uma mensagem em que dizias: nasceu uma menina, nem quando
escreveste num SMS: nasceu outra menina.
Casaram,
e tu nunca tinhas reparado que ele te telefonava vezes demasiadas: “aonde estás,
agora? estás sozinha? tomaste café com quem?” Nunca tinhas reparado, porque tu
achavas que ele apenas vivia na ânsia de te ver ao final do teu dia de
escritório naquela bomba de gasolina à saída da cidade, tal e qual como te
acontecia, a ti que apanhavas o autocarro e demoravas hora e meia até caíres
nos braços dele que te amava demasiado, e tu a ele, e por isso nem reparavas que
nem eram mimos, e nem era de ele ser nervoso ou andar cansado, eram mesmo
bofetadas por isto ou por aquilo, como seja por teres apanhado outro
autocarro pois ficaras a conferir umas facturas.
E nem quando ele te pontapeou o corpo, e nem quando te assentou a mão inteira por diversas vezes.
E nem quando ele te pontapeou o corpo, e nem quando te assentou a mão inteira por diversas vezes.
Tu sabias
que não era brincadeira, e ainda assim desentendias-te.
E um
dia o corpo inchou-se-te desmesurado.
Sim,
tu sabias, mas envergonhavas-te, que tu não querias fazer ruir o teu castelo de
sonho.
E
esperaste.
Tapaste-te,
ferida, com mangas e encharpes e deixaste de usar decotes, até essa vez em que o
rosto te ficou desfigurado, um dos olhos roxo e negro e a boca
rasgada num canto.
Só
então lhe gritaste: “nunca mais.”
Ou
terás gritado outras vezes mas nem pensando que seria de má-fé que ele fazia
aquilo.
Dessa
vez, e daí em diante, ripostaste e ele quase te partiu o pulso, ou virou-se a
ti armado com uma faca ou um pau, e tu passaste a não saber se lhe tinhas amor ou
medo, ou misturavas sentimentos desejosa de que fosse tudo um pesadelo e um dia acordasses.
E
silenciaste.
E mentiste-te: que talvez ele andasse stressado; que talvez se tu
o tratasses com desvelos.
E ficaste
grávida. E tiveste a menina. E foste ficando cada vez mais tu e ele e ela, e depois
tu sem emprego, e depois os ciúmes que nem que saísses para levar a filha ao
médico ou buscar umas compras, ou ainda que ficasses em casa o dia inteiro.
E
engravidaste uma segunda vez que ele era tão gentil, tão amoroso, tão o homem
que tu desejavas a dizer-te: “e se tivéssemos uma rapazito? “
Ele
que inventava histórias para adormecer a filha e chorou e riu e ficou louco de
alegria no dia em que nasceu outra menina.
E no
entanto, os tetos do apartamento foram demasiado altos e as paredes demasiado
grossas para que alguém ouvisse os teus gritos.
Ou tu nem gritaste que eles
ouvissem ou, se viessem em socorro, mentirias a defender o sonho que querias
não desfeito.
Até ao dia em que percebeste que as histórias que
ele contava à filha traziam outros príncipes e outros brinquedos.
Tinha sido
uns dias antes de ele ficar ali pespegado. Desconfiaste. Achaste estranho.
Quando ele entrou estavas de unhas em riste.
Quando ele entrou estavas de unhas em riste.
Ele ali na porta da cozinha e a mais velhinha a
desejar o que tu não sabias que sempre lhe prometia.
Ele
sorrindo a dar-lhe a consola e tu a querer que fosse mentira.
Terás
chorado o sangue todo que tinhas nas veias, mas nem assim disseste uma palavra a
não querer estragar o contentamento da menina.
Triste.
Tão
amargurada que tu estavas.
Só
então contaste.
Ao dia seguinte, contaste o que sabias ser verdade e
espantaste-te de estar descobrindo o horror que tinha sido.
Só
então enfrentaste o desfazer do teu imenso sonho.
Na
Segurança Social prometeram, e sondaram, e fizeram relatórios.
Terão
feito o possível, mas apenas o possível e não o necessário.
Também
a polícia se interessou pela tua causa. Também eles quiseram ajudar, mas
tardaram.
Tão
desesperada que tu foste ficando.
E na
tarde em que saíste com as duas, nem sabias onde ias, e nem sabias se irias a
algum lado. Sabias que nunca mais regressarias e trouxeste um saco com roupa e
pouco mais trouxeste.
Fazia
frio, mas o sol estava morninho e a mais velhinha correu pela areia como se
fosse em passeio. E ria.
Tinhas
percebido que podias ir com elas, passeando, calmas, tu e as meninas: muito
calmas e de mão dada, e tudo ficaria resolvido.
Acreditaste.
Acreditaste.
Tu e
elas mar adentro, que tu não tinhas para onde ir, tu que sabias o que era
ser-se muito querida: tão querida que tu tinhas sido do pai delas, tão querida que tu tinhas sido do teu padrasto.
4 comentários:
Nossa, que texto! Doeu! Chorei aqui. Mais pelo sofrimento dos anos e anos de condescendências perigosas do que pela morte, alívio insano para os fracos, os covardes, os desesperados. Por que tantas mulheres vivem na cegueira e no medo, não? Abusadas, espancadas. Um texto muito especial. Lindo e feio, em sua extensão de tessitura e conteúdo, respectivamente. E são tantas! Que dó!
Parabéns. Tu escreves de forma fluida e deliciosa, mesmo temas feios e dolorosos como este.
Parabéns. Tu escreves de forma fluida e deliciosa, mesmo temas feios e dolorosos como este.
Texto pungente e corajoso. Triste realidade, excelente leitura.
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