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sábado, 16 de janeiro de 2016

Bisneto

Idiotas. Deixem o menino ficar. Que mania essa de afastá-lo de mim! Vocês é que acham que ele me dá trabalho. Eu, não. Eu vejo apenas as gracinhas que ele faz. Os olhinhos apertados pelas bochechas gordas. As perguntas feitas numa língua que só ele entende. Os abraços que me buscam num repente que emociona. Os carros de corrida que passeiam pelas pistas improvisadas nas minhas pernas. Afinal, para que serviriam as minhas pernas se não para serem estradas? Elas que se esqueceram de mim faz tantos anos. Como vocês. Centrados em suas vidas intensas, feitas de amanhãs e de hojes. Normal. As coisas acontecem assim mesmo: primeiro num galope intenso, depois num trote regular. Até que a montaria para, e a gente apeia pela última vez. Sem saber que é a última. Sem ter feito nem metade do que se propôs. E do que tinha direito. 
Mas que coisa! A criança estava quieta aqui no meu colo. Achando graça nas rodas da cadeira. Agora, está chorando. Sem entender porque não pode passar os dedinhos nas minhas rugas fundas. E eu sem entender por que não posso ser incomodado. Por favor, deixem o menino comigo. Voltem para a mesa, para a beira da piscina, para o que for que estejam fazendo. Eu não vou a lugar nenhum. Vocês sabem. Ou não sabem? Que eu não falo mais. Que eu não como sozinho. Que eu não tomo banho, não me visto, não leio. Sozinho não faço mais nada. Não sou mais nada. Fico aqui neste canto que vocês me emprestam em dia de festa. Ou quando tem visita. É um canto estratégico. Bem longe da conversa, e das risadas, e dos garfos e facas perigosos, e da piscina descoberta, e da porta destrancada. Bem perto dos olhos de quem chega, para que ninguém se atreva a dizer que vocês não ligam para mim. Filhos, noras, genros, netos. Todos tão bons e honestos em sua intenção de não me enviar para um asilo. Tão errados em sua percepção equivocada de que isso seria abandono. Não seria. Acreditem em mim. Abandono é um lugar ao qual se chega muito antes do asilo. Um lugar nada estratégico. 
Mas onde é que puseram o menino? No colo de alguma visita pegajosa, com certeza. Que vai sujigá-lo enquanto fala com ele numa linguagem boba e deformada. Por que é que ninguém me escuta? Eu quero o menino aqui comigo. Enfiando na minha boca uns doces meio mordidos, meio babados. Contando uma história enrolada que inclui motores barulhentos de carros, buzinas histéricas, freadas estridentes construídas no fundo da garganta possante. Escondendo na mãozinha fechada pequenos insetos que milagrosamente sobrevivem a tanto aperto.
Não, não, não. Por favor. Agora não é hora de levá-lo para dormir. Deixem que ele pule em cima de mim e me chame de biso um pouco mais. É disso que gosta esta carcaça velha. Vocês e essa mania irritante de dizer que ele me faz chorar. Gente burra. Que não entende que a água nos meus olhos é pura conversa. Um sinal que envio a partir deste silêncio horrível que o derrame me impôs. O bisneto sabe. Entende. E a gente segue assim. Entre uma corrida e outra de carros nas pernas, entre um cavalinho upa upa que ele comanda sozinho no meu colo e um sono curto encostado no meu peito, ele me olha nos olhos e fica esperando a água escorrer. Então, seus olhinhos riem junto com a boca. Ele sabe que também estou falando.



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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


10 comentários:

Nossa!!!! Fenomenal, Cinthia! Esse texto arrasou! Comovente, maravilhoso e com uma frase lapidar: "Abandono é um lugar ao qual se chega muito antes do asilo." Nossa, nota 1000!!

Belo, profundo,um mergulho na alma, uma visão afetuosíssima da velhice. Sempre me sinto mais humana após ler um texto seu.

Mais uma das faces do abandono. Impecável!

Pois é, Tatiana! Cabia naquele projeto original, não ? Obrigada!

Creio que levarei por muito tempo na lembrança essa imagem das pernas inúteis do velho transformadas em estradas pela criatividade e naturalidade do jovem. Estou muito emocionado, algo que sempre me acontece quando leio seus textos, Cínthia. Obrigado por me lembrar que, apesar de difícil execução, estou realizando um trabalho maravilhoso com meus pais, que participam de minha vida, que sempre são o centro das festas, que não esqueço em um canto qualquer. Belo texto!

Eu não esperaria menos de um ser humano como você, Emerson! Você é grande. No melho sentido dessa palavra. Parabéns por cuidar deles assim! Isso é coisa de GENTE! Lindo! Obrigada e beijos.

Luci Afonso, seu comentário finalmente apareceu. Que bom! Muito obrigada! Fico muito lisonjeada e feliz. Você sabe que sou sua fã. Bjks

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