Durante a execução do
seu número, Mondrique mal se permitia disfarçar a tensão. Ela estava lá, a
congestionar-lhe as feições, perturbando sua performance no picadeiro. Havia
errado um truque, mas o respeitável público daquela cidade interiorana perdida
no mapa brasileiro parecia alheio à apresentação e não notou seu equívoco
quando um coelho saiu sorrateiramente da manga de seu smoking no lugar de um
baralho com 52 cartas. Coelhos saem da cartola, resmungou o mágico enquanto mirava
sua partner, Reginalda, também tensa em virtude dos acontecimentos que em
poucas horas iriam se concretizar. Enfiada em um sumário maiô coberto de paetês,
Reginalda fazia caras e bocas mal ensaiadas para o pequeno público que fora
prestigiar o Gran Circo Continental na falta de melhor entretenimento naquela
cloaca de mundo onde viviam.
Não era bem verdade que
os espectadores da última noite em que o Gran Circo Continental se apresentaria
estavam totalmente displicentes em relação ao espetáculo. Havia alguém, o delegado
da cidade, que aplaudia freneticamente cada trejeito de Reginalda. Também
pudera. Ela aceitara o convite para permanecer na cidade, tornando-se amante clandestina
do agente da lei com casa, comida e um par de trepadas semanais tão logo o
circo baixasse suas lonas. Mondrique estava desgostoso. Jurara amor eterno à
Reginalda e não esperava tão sórdida traição. Como descobrira? Mais do que
mágico, Mondrique era dotado de poderes sobrenaturais e a arte da adivinhação
era somente mais um deles.
Poderia fulminar o
casal adúltero por intermédio do seu olhar de seca pimenteira. Já havia
experimentado em certa ocasião, não com pimenteiras e sim com um vira-lata que
ousara avançar em sua canela numa madrugada perdida no tempo quando fora
esticar as mesmas depois de uma apresentação em outra cidade. O pobre cãozinho
trincou os dentes, estrebuchou e literalmente caiu duro em questão de segundos.
O próprio Mondrique espantou-se com tamanho poder e com o tempo aprendeu a
controlá-lo e, sobretudo, não o utilizar em contendas ou descontentamentos. E
era esse agora o caso.
Maldita clarividência,
pensou enquanto agradecia ao público com uma mesura. Despossuído dela sofreria
tão somente o momento da perda e não a certeza ansiosa da véspera. De pouca
serventia era aquele talento, visto que raras vezes algo de bom para a sua vida
ele previra.
Um super homem que
ocultava seus super poderes para melhor viver entre os pobres mortais, assim se
sentia Mondrique. O povo preferiria as mágicas inocentes. Caso levantasse um
cadáver, que pandemônio não causaria! Seria considerado um deus, ou um diabo.
Em qualquer dos casos, certamente desgostos e aborrecimentos teria ele aos
borbotões.
O pequeno trailer que
divida com Reginalda possuía dupla função de dormitório do casal e camarim.
Noites de amores ardentes e preparativos para o espetáculo onde Juvêncio se
transformava no grande Mondrique, maior mágico do planeta, nas palavras do
mestre de cerimônia do circo, aquele apertado trailer havia testemunhado. O
nome de fantasia fora chupado e adulterado de um mágico das histórias em
quadrinhos ianques. De início sabia que Reginalda por ele nutria um amor
sincero, afinal, Mondrique tudo descobria de sentimentos humanos. Um aperto de
mão, um abraço, um simples toque em um fio de cabelo ou a intimidade do coito,
o mínimo contato corporal e lá estava o mágico roubando os segredos alheios.
Com o tempo, aquela faculdade de Mondrique revelou o tédio da amada, indiferença, desprezo, até
culminar pelo interesse de Reginalda pelo delegado e seu projeto de lhe
abandonar. Ao menos algum plano para eliminá-lo ou algo parecido Mondrique não
captara nos cada vez mais escassos contatos corporais com a futura ex-mulher. Revolta
e conformismo acabaram por se digladiar dentro de suas ideias. Que ela fosse,
ou melhor: ficasse na cidade.
Quando ele entrou no
trailer, Reginalda já lá se encontrava. Retirava a maquiagem. Ela se assustou
como uma criança pega em travessura.
– Fez as malas? – ele
perguntou.
– Que malas? A gente
leva tudo dentro do vagão mesmo – gaguejou a partner sem conseguir disfarçar a
surpresa.
– As malas que o puto
do delegado passará aqui para pegá-las ou você iria fugir escondida feito um
rato que se esgueira pelos esgotos?
Quando Reginalda se
foi, Mondrique decidiu que mulher alguma valeria o sacrifício de seu amor.
Nunca mais se apegaria a rabos de saia, rachas ou jogos de seduções femininas.
Para ele, bastavam agora as quengas das casas de tolerâncias instaladas nos
arredores das cidades por onde o Gran Circo Continental aportasse. Haveria até
dividendos: a cada toque recebido ou dado em uma mulher da vida já saberia de
antemão o que ela pensava a seu respeito. Muitas vezes, interrompia o encontro
ou perceber que por ele algumas damas de bordéis sentiam asco enquanto fingidamente
gemiam espremidas entre o corpanzil do mágico e os lençóis fedendo a amores
clandestinos. Pagava a cafetina e voltava para o seu trailer sem mais
explicações. Nessas ocasiões, tornava a resmungar: maldita clarividência.
Certa ocasião, quando o
circo estava armado em um lugarejo perdido no sertão nordestino, algo inusitado
ocorreu. Mondrique, após o espetáculo onde se utilizou de maneira sutil dos
seus reais dotes de levitação, com certo cuidado para que parecesse um mero
truque de ilusionismo, sentiu necessidade de uma mulher para se aconchegar.
Como sempre, perguntou de forma discreta a algum homem das cercanias onde estava
instalada a zona da cidade. Informações tomadas, rumou para o casarão na outra
margem do rio. Puteiro das antigas, com ares de cabaré, shows de moças quase
peladas rebolando no palco e uísque de má qualidade servido. Nem bem havia se
alojado atrás de uma mesa solitária, uma ruiva de vestido curto exibindo coxões
alvos e colo sardento explodindo pelo decote acentuado, sentou sem cerimônia ao
seu lado.
– Bebe o quê, meu
lindo?
– Para mim, uma água
tônica. A moça pode pedir o que desejar.
Água tônica naquele
tipo de estabelecimento não havia. Contentou-se com um refrigerante. A ruivona,
quase um metro e oitenta de carnes bem distribuídas pela silhueta, lhe pareceu
simpática, além de sexualmente atraente. Gastaram alguns minutos em conversa pra
lá de fiada e Mondrique pagou as bebidas enquanto combinava os honorários por
uma hora de serviços na horizontalidade de uma cama. Subiram uma escada em
caracol para o segundo andar do prostíbulo onde ficavam os quartos. A ruiva ia
à frente, com o traseiro quase esbarrando nas ventas do mágico. No corredor,
ela pegou na mão sinistra de Mondrique para guiá-lo até um dos cômodos.
Estranheza correu por todo o seu corpo. Não divisou nada após o contato. Que
intenções teria aquela mulher? Sua vidência findara? Haveria alguma
interferência, um ruído na comunicação parapsicológica? Maldita clarividência
que o abandonara, pensou.
Dentro do quarto
semelhante a uma cela de convento pela pobreza dos móveis e cabine de navio
pela economia de espaço, quis saber a graça da ruiva:
– Gigi.
Toda puta provinciana
se chamava Gigi.
– De guerra? –
perguntou Mondrique tocando-a de leve na ânsia de descortinar sua verdadeira
identidade. Nenhum sinal telepático.
– Claro, lindo. O da
pia batismal eu digo só para aquele que me tirar da vida – zombou enquanto
mostrava os dentes alvos como o corpo que revelava à medida que o vestido escorria
até o chão.
Diante da monumental voluptuosidade
que se apresentava à sua frente, Mondrique esqueceu por um tempo as
inseguranças dos poderes extra-sensoriais perdidos e se perdeu nos labirintos
de Gigi, que dele fez gato, sapato, barba, cabelo e bigode, deixando-o
extasiado.
Enquanto o Gran Circo
Continental permanecia naquele rincão no fim do mundo, Mondrique quase que
diariamente visitava Gigi nos seus aposentos de luxúria. Ela se mostrou receptiva
ao mágico, tratando-o com carinho, ternura e muito sexo. Após cada ato
consumado, dia após dia, o mágico tentava, através de abraços, beijos e
chamegos, conseguir extrair da meretriz algo que revelasse seus verdadeiros
sentimentos. O afeto que Gigi demonstrava antes e depois dos entrelaçamentos
mundanos eram reais? Maldita dúvida que me assola, resmungava Mondrique.
E ele foi se
apaixonando pela marafona do interior, quebrando a promessa que fizera quando
da deserção de Reginalda. Com medo de que o dono do circo resolvesse encurtar a
temporada na cidade em razão das baixas bilheterias, decidiu usar seus poderes
ocultos e incrementar cada vez mais seu número, visando atrair público e manter
o picadeiro montado por aquelas bandas.
Foi um tempo em que o
Gran Circo Continental vivenciou apresentações memoráveis, desde a já manjada
levitação de objetos, alguns dias depois trocados por voluntários que se
aventuravam ao sobrevoo sobre a plateia quase esbarrando no alto da lona
circense, passando por um extraordinário espetáculo de luzes e fogos que
jorravam das mãos energizadas de Mondrique, este tomando as devidas precauções
para não ferir um membro da plateia mais entusiasmado. O ponto alto foi quando ele deu de fazer
adivinhações. Desta forma, descobriu que seus poderes telepáticos só com Gigi
não funcionavam. Maldito mistério, lamentou.
O circo entupia de
gente na esperança de conhecer um futuro melhor após o mágico tocar-lhe as
mãos. Contudo, Mondrique assevera que só o passado revelava. O futuro a Deus
pertence, repetia prevenido em não se meter em complicações acerca das fofocas
locais. Atendia no máximo a meia dúzia de curiosos, revelando nomes de família,
doenças de infância, fatos marcantes em suas existências. Do passado, escondia
com habilidade qualquer fato embaraçoso daqueles que se dispunham a tomar parte
no número.
A fama do mágico correu
toda a região e claro que a outra margem do rio não poderia escapar das
notícias que um prestidigitador estava fazendo proezas no cirquinho mambembe
que por ali aportara. Gigi, que já sabia onde e no que Mondrique labutava, foi
em seu dia de folga, acompanhada por um cortejo de quengas, prestigiar o
sucesso de seu cliente preferencial. Sentou-se na primeira fila ombreada por
suas colegas de profissão, para o escândalo da sociedade local. Mondrique ficou
encantado com a visita e no final da apresentação, materializou um ramalhete de
flores que ofertou à amada. Ele tinha planos.
– Quer casar comigo,
Gigi?
– Tenho que ir com o
circo, lindo?
– Na cidade eu fico,
mas terás que largar a saliência.
– Aceito então.
Alugaram uma casinha do
outro lado da margem do rio. Mondrique dava consultas, passado, presente e
futuro. Até pequenas curas fazia. Tudo a preços módicos, mas o suficiente para
levarem uma vida confortável. Com o tempo, caravanas começaram a chegar à porta
da casa, no intuito de consultarem o vidente agora famoso. Hotéis, restaurantes
e lojas de lembrancinhas alavancaram o comércio da região. Até o puteiro onde
Gigi trabalhara se beneficiou com o fluxo de turistas. Mondrique tinha alguns
aborrecimentos vez por outra. Em inúmeras ocasiões foi preso pela prática de
curandeirismo e solto após alguns dias, voltava ao seu ofício de médium. Gigi
na verdade se chamava Laurinda. Isso Mondrique, agora rebatizado de Irmão
Juvêncio, não adivinhara. Ela mesma, cumprindo promessa, revelara o nome ao
marido. O que nunca Juvêncio descobriu foi que Laurinda também possuía os dotes
da clarividência. De alguma maneira o contato corporal entre aqueles seres
embaralhou o dom do esposo enquanto o dela se manteve intacto. Abominava
utilizá-lo. Durante toda infância, de bruxa era chamada pela família e
vizinhança. Assim, quando Juvêncio a tocou na noite em que se conheceram, ela
já sabia o final dessa história.
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