Três
metros e quarenta centímetros foi o que tu mediste. Palmo a palmo, que tu
sabias que eram vinte centímetros certinhos, desde o início do pulso até ao
finalzinho do teu dedo médio. Tinhas medido no Natal passado, num brincar com os
teus sobrinhos.
Trezentos
e quarenta centímetros sem luz e sem mais espaço transversal do que o ocupado
pelo teu corpo e, ainda assim, tu arrastando-te. Lenta, esforçada, a tentar
desenterrar-te, sair dali, perceber o que teria acontecido.
O
sedoso do teu vestido deslizando-te o corpo ensopado.
Que tentasses
sair daquele odor a humidade; que te livrasses da terra enlameada a empapar-te
o cabelo e o ventre, e sob os pés onde as sandálias deixariam um sulco.
Tu
deslizando, a cada vez, muito menos do que os vinte centímetros do teu palmo, e
ao fundo nem foi luz que visses. Ao fundo, foi o teu braço dependurado sobre um
ruido intenso de água em tumulto.
Água
escarlate que àquela hora todo o mundo via e se espantava e lamentava, cada um
no conforto da sua casa, sua rua, sua cidade, sua aldeia; ou a dançar num
arraial semelhante àquele para onde te dirigias.
Água
da cor da terra. Um castanho avermelhado tão da cor do sangue que doía ver
assim esmagada a terra e a vida de tantos homens. O horror a entrar pelas casas
de todos e lá, abandonado, o teu braço palpando um apoio, o teu braço dependurado
de dentro da conduta que te abrigara, solta sabe-se lá de onde, num daqueles
acasos perversos que se dão nos destinos das pessoas.
Água
que tu nunca irias saber de onde e nem como.
Tu a
tentar rolar-te sobre o ventre, rodar o teu corpo apenas coberto com o vestido branco
estampado com ramos verdes; o vestido que tinhas escolhido para ires ao arraial.
E tanto que tinhas querido que fosse bem escolhido. O vestido e o lenço que
ataste sobre os caracóis, e a pulseira que entretanto perdeste – deixaste de
lhe sentir o toque, ias ainda na estrada estreita que vinha lá da encosta, tu
conduzindo em segunda que a descida era um nadinha íngreme. Era mesmo muito
inclinado esse troço da estrada. E cruzou-se contigo um carro. Ia ao volante um
homem jovem, reparaste. E foi logo de seguida. Tão de seguida que tudo se deu.
Tinha
estado uma tarde límpida, e assim aquela chuva era coisa estranha.
E o
carro rolando, primeiro em linha recta, e depois aos tombos, e tu jogada sobre
o assento a segurar-te, a tentar manter-te fixa, a espantares-te daquela água toda
até ser o embate.
Nunca
irás saber como e nem de onde.
Tu a
tentar sair do túnel ou o que é que te rodeia e comprime como se fosse tumba. Tu
rastejando três metros e quarenta centímetros e a tua mão a tatear apenas
espaço vazio.
Um
dia sairei daqui, dizes-te assim, e não choras, que a ti ensinaram-te que os
deuses são justos. Justos e misericordiosos.
Eles
hão-de salvar-te.
Mantém
vigília, não soçobres, aconselhas-te, que tu ainda agora não percebes se foi
grande chuva, ou se foste tu que fizeste, como fazias tantas vezes, e passaste o
paredão a encurtar caminho. Mas não. Hoje, tu tinhas ido pela estrada. Hoje, não
foras pelo dique. Não, não tinhas caído lá de cima. Foi outro o modo de ter
ficado assim tanta água. E a sorte de estares agora em terra firme, se bem que
nem saibas onde e nem te possas sequer voltar sobre a barriga a tentar ver que
final é esse que apenas o teu braço detecta.
E
paras, não te mexes.
Se
soubesses rezavas, mas tu desaprendeste. Ainda assim, tentas, nem que seja para
te manteres desperta: deuses do firmamento acudi-me, suplicas, e o calor da
lágrima que se solta, à revelia, aconchega o teu corpo, ali, naquele final dos
trezentos e quarenta centimetros bem medidos.
5 comentários:
Fátima, não sei se você escreveu esse conto pensando no rompimento da barragem no Brasil. Mas encaixou perfeitamente. Descreveu exatamente. Chorei muito com teu conto. Pensando nos nossos aqui. Essa tua linguagem é linda e suave,
mesmo na desgraça. E faz a gente pensar, sofrer, chorar, como eu disse. Amei. Amei mesmo. Quanta sensibilidade! Sufoquei com ela. Obrigada!
eu que te agradeço
beijo amigona
Foi arrepiante. Maravilha, Maria de Fátima. Parabéns! Mais uma emoção forte que sinto sobre esse crime trágico.
Nice post thank you Sandra
Rain Shayari
Pappu SMS
Interesting SMS
Santa Banta
Miss u Shayari
Motivational Shayari
Valentine Day SMS
Facebook Status
Postar um comentário