Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sábado, 26 de setembro de 2015

Trem custoso

A vida é um trem custoso. O dia a dia é complicado. Tem despertador que funciona, relógio que não para, dívidas que nem cochilam. O noite a noite traz insônia, obstrução nasal, zumbido de muriçoca, soluço de bebê, pesadelo. Não faltam atravancos, contratempos, embaraços, desarranjos, encalhes, estorvos, abacaxis, pepinos, tropeços.

Pense bem. Viver é passar perrengue. A vida é a arte do sufoco. Não gostou da minha máxima? Achou que é filosofia barata? Sabedoria de botequim? Deixe a intelectualidade de lado. Pense na sua vida particular. Reflita sobre o seu ontem e o seu hoje. Faça um retrospecto de seu novembro a novembro. Tenho certeza de que você consegue montar rapidinho, em silêncio, em segredo e sem vergonha, sua própria lista de dificuldades.

Vejamos. Não é fácil: acertar todos os números da Sena, concluir o Doutorado em Física, conquistar um belo artista plástico, virar triatleta em menos de um ano, manter as leituras em dia, dormir um sono ininterrupto tendo um bebê em casa, fugir das multas do Detran, seguir uma alimentação com restrição a glúten e lactose...

Também é dureza: largar o cigarro pra sempre, emagrecer três quilos e 852 gramas e não recuperar nadica, ir à academia três vezes por semana toda semana e obedecer fielmente à série de musculação prescrita pelo professor de maromba (sem corromper nem um agachamento, nem um abdominalzinho sequer), passar num bom concurso público dentro das vagas do edital, manter os brinquedos das crianças organizados, sair imune ao Fisco, alimentar e diversificar o amor...

Aprender a tocar um instrumento não é diferente. Pelo contrário: estudar piano é muito pior. Quando se trata de aprender música clássica, então, o desassossego sobressai, vitorioso. Sobram tropeços e engasgos e desvios e absurdos em cada peça a ser executada. Não há uma única partitura rápida e simples de digerir. Nenhum compasso desce redondo de primeira, de segunda, de centésima vez. Cada parte tem o seu quê de azia, de azedume, de entojo, de estraga prazer. O pianista tenta seguir a marcha e aí aparecem as lombadas, e ele tem de brecar, repetir o trecho mais e mais para desengasgar. Tocar bem é uma peleja sem fim!

O aprendiz deve ser persistente e aguerrido, mas também não deve sofrer demais por não conseguir tocar a música inteira. Algumas partes são realmente intransponíveis, e ninguém deve morrer por conta disso. Vale ficar tristinho, resmungar um pouco e se apegar a Santa Cecília; mas nada de se desesperar ou cometer um desatino. É preciso repetir, humilde e resignadamente, milhares de vezes aquele trecho amaldiçoado (que, na maioria das vezes, é o mais lindo e virtuoso, o clímax da música em questão).

Domar uma peça por completo é difícil mesmo. Sejamos francos: geralmente, impossível. Mas o estudante tenta, porque teimosia também é dom de Deus. E quando se trata do cabeludo Concerto para piano número 3 em ré menor, de Rachmaninoff, ou dos intrincados estudos de Chopin? O que falar da Rapsódia Húngara número 2, de Liszt? Será que até Nelson Freire já penou para interpretá-las — mesmo um padecimento bem fraquinho?

O legal é que cada obstáculo aparece no momento exato e para a pessoa apropriada. Não é preciso sofrer com os empecilhos que virão lá na frente. Eu, por exemplo, tenho plena convicção de que, na vida terrena, nunca vou conseguir tocar com correção, de fio a pavio, um estudo de Chopin ou um prelúdio de Debussy. Amansar fera braba é para poucos iluminados. Mas vou tentando aqui e ali domesticar pelo menos as partes mais dóceis. Milagres acontecem. Quem sabe, uma hora, não sai um som de qualidade?

Fico pensando. Será que o céu também há de oferecer barreiras ao pianista? Ou será que lá nas alturas será possível tocar de cor, bonito e por completo uma sonata de Beethoven? Será que lá eu vou conseguir, enfim, dedilhar de forma sublime e sem grande esforço aquilo que estudo por aqui?

Não saber a resposta é bom demais, porque prova que estou vivinha de amaral e elói. É bem melhor continuar fazendo música cá embaixo mesmo, na peleja, no sufoco, na saborosa complicação do dia a dia. Porque só passa aperto quem está tentando se virar, quem está querendo ser. E como bem destacou o nosso saudoso Gonzaguinha: “É a vida, é bonita e é bonita”.

Maria Amélia Elói

Share




0 comentários:

Postar um comentário