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sábado, 15 de agosto de 2015

jogo de damas



  Gabriela calça-se.
  Sapatos simples não fosse o tom vermelho tal e qual cor de sangue que se soltasse por ferida aberta.
  Calça-se e ergue o corpo em cima dos dois saltos nem assim muito altos, mas finíssimos, e vai ponteando o pedacinho de soalho num ruido seco, atenta ao ressoar das tábuas, um desdobrar em muitos os passos ainda mesmo que descalços, quanto mais aqueles.
  Gabriela Feiteira a deslocar o seu corpo magro: um metro e cinquenta e quatro que quase se diria enfezado.
  Cabeleireira de senhoras com salão no bairro, mora naquela água furtada faz um ror de tempo. Por largos anos, morou apenas num quarto, um esconso com falhas no soalho e uma janela donde Gabriela dantes via o Tejo. Antes de terem erguido aquele mamarracho cor-de-rosa com janelas de vidro fosco para dentro das quais ela nada vê, não sabendo, assim, se são novos ou velhos os vizinhos da frente que, em contrapartida, de qualquer ângulo, podem espreitar-lhe as intimidades, que Gabriela nem uma cortina na janelinha debruçada sobre telhas onde semeia um pé de salsa nos vasinhos em que outrora deixou florir uma craveira e duas sardinheiras. De vez em quando, também nasce um ou outro tomate. 
  São vasinhos de barro que Gabriela rega à tardinha, já quase noite, quando regressa de um dia inteiro: bom dia, dona Mª das Dores! está boazinha, dona Arnaldina, como vamos fazer, hoje, este corte? a filha, está melhorzinha, dona Gertrudes?
  O dia inteiro de braços levantados a segurar a escova, o secador, o pente ou a tesoura, e as meninas das lavagens cada vez mais badalhocas, mais desinteressadas que não seja pelos cruzados contados em euros que lhes paga a cada dia dez.
  Paga-lhes assim, dessincronizada dos dias de fim de mês, por superstição que lhe ficou desde o primeiro emprego no Salão Azul a Campolide, propriedade da Dona Ermelinda Passos, e que Deus Nosso Senhor tenha na sua paz a alma dela, murmura Gabriel e benze-se duas vezes sempre que o nome da antiga patroa lhe vem à memória.


  Gabriela desce a escada daquele prédio muito antigo.
  Desce devagarinho. Desce agarrada ao corrimão de madeira carcomida.
  Desce de lado a escadinha torta, estreita e empinada onde o soalho está muito ratado pelo caruncho e calcado dos seus saltos altos, que Maria Clara nunca calçava saltos altos.
  Maria Clara que morreu faz dois anos nessa segunda-feira.
 A escada está também manchada e será dos variados vómitos do Senhor Teófilo escriturário que ocupou o outro quarto da água furtada, o que dá para a travessa, e disso que nunca tenha tido outra vista que não fosse a sacada do Senhor Tenente Murtinheira, uma janela sempre cerrada por cortinas de cassa e, atrás delas, pesados reposteiros de damasco.
  Gabriela entreviu essa paisagem, pela primeira vez, quando o Senhor Teófilo já estava muito adoecido e vieram buscá-lo a pedido de Maria Clara. Que seria melhor que fosse para uma cura de ares, tinha ela convencido o Senhor Teófilo.
  Depois, quando chegou a carta participando que o homem não voltava, Gabriela ajudou a limpar o quarto devoluto, a desinfectar cada estria de madeira.
  Vamos afugentar desta casa essa doença maldita, tinha gritado Maria Clara tanto quanto a deixava a sua quase afonia.
  Que tinha sido soprano, que tinha cantado no S. Carlos, gostava de gabar-se numa voz que mal se ouvia, rouca e sem alcance, resultado duma corrente de ar nos camarins, explicava Maria Clara a assoar-se, a lutar com a renite que lhe ficara desses tempos, mais a afonia e a miséria.
  Vivia das rendas daqueles dois esconsos, e dos seus negócios, que era como designava as saídas que fazia por dois ou mais dias: Gabriela, olhe-me por isto, que eu vou tratar dos meus negócios, e lá ía, em cada mês um choufer a buscá-la num carro diferente, que tanto eram mercedes reluzentes, como carritos de marcas que Gabriela desconhecia, em cores debotadas e com riscos.
  Maria Clara, e nem dona nem senhora dona, que ela considerava charme ser tratada apenas pelo nome.

  Na rua, os saltos de Gabriela sussurram os altos e baixos da calçada muito lisa, muito arredondada, muito húmida no amanhecer que é sempre a hora em que ela sai a caminho do salão.
  Salão Gabriela, cortes e manicure, assim pode ler-se em letras doiradas desenhando um semicírculo no vidro da montra. Um salão seu na Francisco Metrass em Campo de Ourique. Uma porta estreita que Gabriela mantem aberta das nove às dezanove sem pausa para almoço, e na montra, em cima duma toalha de plástico a imitar renda de bilros, tem dispostos meia dúzia de lacas, uns champôs e cremes de marcas que ela lê como sabe ou como ouve na TV. E, a entretecer aquela panóplia, uma jarrita com flores quase naturais de tão semelhante que o plástico consegue fazer as flores.
  O salão. A sua fortuna e o seu desespero.
  Duas bacias para lavar cabeças, um nicho para tratar calcanhares e unhas que ela mesma se ajeita numa gestão rigorosa de marcações em que trate os calos ou faça uma mise ou um corte e, mais raro, uma permanente. Desfrisados é mais frequente. Há ainda o espelho de parede inteira e as duas cadeiras que rodam e vão acima e abaixo; amarelas, como o amarelo do friso que decora o branco da parede e como é a cor das cortinas que protegem do sol que, por todo o ano, entra pela montra entre as oito e o meio-dia.

  Os saltos dos sapatos de Gabriela sussurram no alcatrão quando ela atravessa a passadeira, mesmo em frente do salão. Depois, é o ruido suave dos passinhos curtos que Gabriela faz sobre a calçada do passeio.
  Gabriela Feiteira por razões que desconhece pois nem teve pai nem conheceu mulher a quem chamasse mãe. Dizem-lhe, na instituição onde cresceu, que chamava mamã às mulheres que serviam à mesa.
  Ainda hoje, quando, num restaurante a que vai raras vezes, o empregado se debruça a perguntar que deseja ou a colocar mais pão na cestinha, Gabriela sente aquele impulso de tratar o homem pelo termo com que tratava as raparigas no Lar de freiras onde a colocaram, mal nascida e deixada num beco nunca ninguém lhe soube explicar onde nem quem a entregou enrolada numa manta velha. Que é feito dessa manta, ainda se atreveu a perguntar, mas a freira atalhou que tinham deitado fora: que jeito teria terem guardado uma peça tão feia? E Gabriela nunca mais se atreveu a inquirir do seu passado.

  Gabriela abre a porta do salão e vai dizendo bom dia ao homem do bate-chapas que fica na esquina. Sorri-lhe, que ela o que aprendeu, mais do que tudo o que aprendeu à sua custa, é a deixar que um sorriso morno lhe banhe o rosto, que lhe ressoe pelo corpo como ressoa o som dos saltos no soalho roto do seu quarto.
  Bom dia, Dona Gabriela, diz-lhe o bate chapas, e Gabriela sempre sorrindo: bom dia, Emílio.
  Gabriela que pratica o sorriso com fervor de devota.
  Terá sido disso que o Senhor Teófilo, muito antes de ter sido enviado para um desses hospitais mandados erguer pelo regime em locais de bons ares, a convidou a jogar às damas no quartinho dele onde tinha livros numa prateleira dependurada do tecto com umas cordas.
  O Senhor Teófilo que, naquele espaço exíguo, ainda tinha uma pianola de onde arrancava áreas de ópera a pedido de Maria Clara.
  Tinha sido um convite feito de janela para janela, no ângulo justo em que só um grande acaso traria um dos hóspedes a ver a outra água furtada. Gabriela sorrira depois de lhe ter dito, muito séria, que não, Senhor Teófilo, eu não jogo a nada. E retirara-se para dentro apesar de ser noite de Julho e se estar bem a apanhar a brisa que soprava do rio.
  Nunca mais o homem a convidara para coisa nenhuma.
  No dia em que foi ajudar Maria Clara a limpar o quarto, Gabriela encontrou, entre os livros, dobrado em quatro sobre a caixa de madeira onde estavam as peças pretas e as peças brancas, um cartão: a embalagem de qualquer produto que já não se identificava, onde tinha sido riscado com lápis de pau um tabuleiro de damas.
  Maria Clara tinha dito: vai tudo para a fogueira e que o fogo limpe todos os micróbios, e dera-lhe um par de luvas para que se protegesse e uma bata e fora repetindo que queimaria tudo.
  Gabriela ainda hoje guarda, sem qualquer cuidado que tenha tido em desinfetá-lo, o tabuleiro e a caixa presos com uma cordinha. Um pedaço de corda fininha meio enegrecida do ata desata que o Senhor Teófilo tenha feito nos tempos em que, assim contava: éramos oito e vivíamos nas faldas da Serra da Estrela, nem pobres, antes remediado. 
E os oito eram pai e mãe e quatro irmãos, e ainda um afilhado, todos mortos de uma gripe aziaga, e ele ficara, muito novito, ao desamparo. Viera para Lisboa e fizera-se engraxador antes de frequentar a escola e fazer as vezes dos que, iletrados, pediam a uma alma caridosa, no registo, no banco, ali e acolá, e mesmo em suas casas, que fizesse a bondade de escrever o que eles não sabiam: papéis comerciais ou uma carta, tantas vezes, plena de intimidades. Davam-lhe um tanto ou pagavam-lhe em géneros, que as mais das vezes o que levava para o quarto eram ovos, um pão ainda quente, umas cebolas. Vinho trouxe, também, mas raramente. Maria Clara ameaçava-o de o pôr na rua se não pagasse em notas a miséria da renda, mas o homem tinha meses de arrecadar apenas escassas moedas e, no entanto, era na cozinha de Maria Clara que depositava a mercadoria: até um pato lhe trouxe, um dia.
  Assim que ficou limpo e desinfetado o quarto onde Gabriela nunca fora jogar damas, Maria Clara propôs-lhe que o ocupasse a expensas de umas mises, uns cortes de cabelo, umas unhas tratadas.
  Uma água furtada que seja só sua, disse-lhe, sorrindo, a lembrar-se do título de um dos livros do Senhor Teófilo: precisamente o último que enviara para as chamas da salamandra.

  Gabriela liga o esquentador e sacode umas toalhas.
  Tem duas marcações, uma daqui a meia hora e outra às onze. Tratamento de uns calos e unhas encravadas, e um corte.
  Ajeita tesouras e pinças e uma navalha sobre uma mesinha, e cantarola. Antes de abrir o Salão, ainda irá tomar o pequeno-almoço ao café do Senhor Alves e da Dona Margarida. No caminho comprará um sabonete de amêndoas doces para os cotovelos que descobriu que andam escamosos.
  Bom dia dona Gabriela, diz-lhe o Senhor Alves, e ela responde bom dia e pergunta: e a Dona Margarida?
  Que acordou com dores, responde o homem e diz, confidente, do lado de lá do balcão: coisas de mulheres, sabe? e já está a juntar o café ao leite numa chávena aquecida e a tomar conta da meia torrada, que ele sabe que é sempre o mesmo para a Dona Gabriela. Depois, dará a volta ao balcão e irá dirigir-se para a mesinha que fica junto da janela, essa onde Gabriela se acomoda enquanto ele lhe grita: e está melhorzinha da sua dor de costas, Dona Gabriela? E logo dirá, curvado para a mesa: pronto, aqui tem o seu pequeno-almoço.
  Francisco Alves, rapazito, ainda, quando veio de uma aldeia perdida lá pelos lados de Moura. Teria treze anos mal feitos e comeu o pão que o diabo cozeu, ou nem isso ele comeu em tantos dias de passar fome. Casou aos vinte anos e Margarida já ia prenha de seis meses. Uma vergonha, diziam na aldeia lá a norte de onde Margarida tinha vindo ainda em idade de ir à escola. Uma vergonha, repetiam, e nem um alfinete nem um abraço que lhe tivessem mandado pela prima que veio, como ela, servir para a cidade. Passaram muita lástima. Choraram muita lágrima o marçano e a criada. E nem foi apenas com a morte da menina. Uma benção dos céus, foi o pensamento que atravessou a mente de Francisco Alves a ver o anjinho mal nascido e já morto.
  Margarida não voltou a ficar prenha.
  Uma benção dos céus.
  De vez em quando, este pensamento ainda o assalta, nunca se atrevendo a partilhá-lo com Margarida, e nunca o balbuciando, sequer, em confissão.
  Mas foi, sim, uma bênção que não tenham procriado, está disso convencido Francisco Alves, e nem ele sabe da mágoa imensa, da pesada culpa que Dona Margarida carrega por cada um dos filhos que não lhe deu.


  São sete horas de mais um fim de dia.
  Gabriela descalça-se. Retira, devagar, um dos sapatos.
  Vermelho. Cor de sangue e cor de fogo.
  Deixa-o cair sobre o soalho.
  Retira o outro. 
  Larga-o devagar e fica ouvindo o ressoar, aquele som amigo a desenrolar-se.


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