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terça-feira, 9 de junho de 2015

Antípoda


Um resumo em duas palavras: ele mereceu.

Mas espere, não me julgue precipitadamente. Não sou louco. Diante dos fatos, a atitude que tomei era, digamos... inevitável.

Sou um homem bom, Deus sabe disso, e há de me julgar de acordo com a justiça empregada em cada ato que pratiquei. Ele também era um homem bom, mas, sabemos, a vida pode nos conduzir por diferentes caminhos. A infelicidade, para nós dois, foi nos cruzarmos justamente enquanto cada um seguia para um destino.

Eu matei minha mãe, mas ninguém quis me prender por isso.

Desde então, vivo sozinho no apartamento que um dia foi de meus avós maternos. Fica em um prédio pequeno, maltratado, que me abriga desde que me conheço por gente. Por esse lugar já passaram dezenas de vizinhos, mas nunca alguém como ele...

Desde sua chegada com a família as coisas mudaram substancialmente por aqui.

Odeio mudanças, a não ser que eu as tenha planejado. Minha rotina – sim, é importante acordar a cada manhã e saber porque se tem de fazer tudo novamente, do mesmo jeito, para manter um equilíbrio entre corpo e mente –, a rotina que é minha razão de viver, foi quebrada.

Pode você imaginar quanto tempo levei até conseguir estabelecer uma meta a seguir?

Primeiro foram os constantes pedidos de empréstimo de gêneros alimentícios. Era desafiador ter de abrir a porta e trocar um tanto de palavras bestas até que o pedido fosse finalmente concretizado com o traumático: se não for incômodo. Pior que isso eram os tapinhas nas costas e as últimas palavras gritadas enquanto ele subia as escadas de volta para o apartamento acima do meu.

Em pouco tempo as batidas de pé começaram a fazer parte do repertório. Toda a noite.

Eu acompanhava, atormentado, aqueles sons graves e abafados por entre os cômodos. Não demorou para que ele começasse a gritar também, e daí a colocar música alta foi um pulo.

Tinha vontade de reclamar-lhe; na verdade, queria dizer-lhe uns bons impropérios quando ele tocava a campainha em busca de novos pedidos. Mas assim que abria a porta seu sorriso era tão cordial, e sua voz tão envolvente, que eu esquecia do mal que ele me causava. O cavalheiro à porta nem parecia o monstro que morava no apartamento de cima.

Foi por causa da minha impotência em enfrentar-lhe com palavras que comecei a arquitetar o plano. Na penúltima vez que o vi, sorri-lhe com vontade, sabendo que logo eu teria minha rotina restabelecida.

Um cabo de vassoura era o bastante. Não qualquer cabo – um de madeira maciça, pesado. A forma de usá-lo, ou seja, a intensidade das batidas, teria de descobrir no próprio momento, analisando seu efeito com os sentidos da visão, da audição e do... tato.

A campainha toca.

Acho que precisei de cinco minutos, não tenho certeza... O silêncio estava restabelecido.

Um mês depois, ele veio se despedir de mim. Até pediu desculpas. Para o chão quebrado, arranjei um tapete velho que estava guardado no fundo de um armário.



Foto: Overlook Hotel, de Pat David. Usado sob licença Creative Commons. Ilustração original:

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