Ildefonso
beberia uma chávena de chá e depois iria.
Nos cartões-de-visita
tem escrito Mendes Cordeiro, médico. E, por baixo, em letras mais pequenas:
obstetrícia e doenças de senhoras.
Beberia,
sim, uma chávena de chá.
Ildefonso
Mendes Cordeiro que já era canhoto antes do acidente usa sempre uma luva na
mão com que antes se barbeava quando o fazia com Gillete ou com navalha,
coisa que talvez tenha usado uma ou duas vezes. Ele sempre foi esquerdino para
a máquina eléctrica e para tudo o resto, tanto que, no casamento, ia colocar a
aliança no dedo da mão contrária de Madalena Andrade. Andariam ambos pelos
vinte e quatro e corriam já os anos da guerra. Ildefonso foi mobilizado, mal
terminou o curso.
Devemos
evitar que um dia digamos desaforos um ao outro, escrevera-lhe Madalena numa carta imensa,
folhas finíssimas deixando transparecer letras de um lado ao outro, palavras
que se amalgamariam em discursos absurdos se fossem lidas com luz que incidisse em ângulo adequado sobre aquele papel de seda.
Deveremos
não chorar a prole que nunca geraremos, assim pensara Ildefonso enquanto lhe dizia,
numa carta lacónica, que sim, que ela tratasse do divórcio, mas se despedia com
beijos ternos e saudade imensa do teu Id, diminutivo com que Madalena o tinha
sempre tratado. E quando foi desmobilizado, tinham permanecido juntos.
Ildefonso
beberia um chá fervendo ali mesmo, ao balcão, o açúcar deitado com a mesma mão
com que o mexeria com a colherinha de plástico que tiraria do invólucro, os
dentes da frente, ainda os que lhe tinham nascido por volta dos sete anos,
ajudando a rasgar o papel.
E
não sorveria a beber um golinho. Madalena tinha horror a esse ruído. Mas Ildefonso
sopraria. Isso, faria. Um sopro sobre a superfície do líquido quente, qual ventinho
suave que demoraria num gesto, todo ele, placebo.
Ildefonso
Mendes Cordeiro que se engasga, tosse, busca um guardanapo no suporte, e é um
gesto aflito, demorado, esse de desentalar o papel, e ele tossicando para
dentro da mão enluvada num cinzento rato, pele de uma boa marca trazida não
saberia dizer de onde. Ildefonso
com a mão esquerda atarantada e tossindo para a luva, inspira
profundamente, acalma aquele engasgo, e pede um pingo de água que destempere o
chá fervendo.
O empregado traz-lhe um copinho raso, um vidro baço que Ildefonso
segura com cuidado a verter apenas um fiozinho sobre o chá fumegante.
Gengibre,
pedira ele, que gosta daquele travo doce-amargo.
E, sem
querer perder o prazer que lhe dá o calor da loiça, Ildefonso envolve o bojo da
chávena com as mãos, e fica saboreando o chá em golinhos esparsos.
Beberia
um chá e depois iria, tinha ele pensado.
***
Em
volta não havia horizonte. Descesse os olhos, e
era o negro desde de ali até, nem Ildefonso sabia até onde era apenas escuridão
e, lá no cimo, um céu pejado de pontos luminosos, uns dispersos, outros
parecendo sobrepostos, uns mais cintilantes do que outros brilhando como
pequeninos sóis.
Um
céu estrelado, pensou Ildefonso já o carro se perdia num rumor rouco, e a
escuridão rangia como ferrolho na cela do preso, e sentiu por instantes a
respiração em descompasso e as mãos tremendo, mas logo se recompôs, o ar
entrando e o ar sendo soprado e depois repetindo, e repetindo, até dar por ele
a desejar uma aguardente, ele que não bebia desde aquela saída para o mato:
todos mortos, excepto o condutor. O condutor e ele que ficara com a mão direita
esfacelada.
Ildefonso
respirando, calmo, o ar daquela noite dos deuses.
Terá
que ser numa noite sem vento e sem lua, e terá que estar no ar uma temperatura
de, ao menos, vinte graus, dissera a mulher que rodava entre os dedos uma
enfiada de dentes de animal como se fossem contas de um rosário.
Ildefonso
procurara ajuda e a mulher prometera que daria tudo certo.
De
bruços sobre a areia morna, as mãos enterradas e o corpo ligeiramente apoiado sobre
o lado esquerdo, de cada vez que move os dedos da mão esquerda e os que lhe sobram por baixo da luva, a areia desliza-lhe, fina, pelos antebraços.
Ildefonso
aguarda, seguindo os ensinamentos da mulher.
De
vez em quando, parece distinguir a fralda branca dum vestido, mas é o branco, raro, de uma
crista de onda; e um som que cuida ser de anjos é apenas o rumor das ondas
deslizando espumas pela praia.
A
mulher tinha-lhe dito: será melhor que não saiba onde.
E o táxi
rodara em círculos, rolara descendo e roncara subindo.
O
taxista era um rapaz bem-apessoado, mas receou-se: e se lhe acontece algum
desastre?! e Ildefonso prometera-lhe que não iria acontecer fosse o que fosse e
que não, que não seria caso de polícia. Era Ildefonso respondendo ao receio do
taxista: depois, dizem que fui o último a vê-lo, e eu não quero porras com a
justiça.
Acabou por explicar-lhe que vinha encontrar-se com a esposa, que era assim
uma espécie de jogo, mas não lhe falou em guerras, nem em anjos, nem noutros
pormenores, e subiu a oferta, enquanto abria o livro de cheques e retirava a
tampa duma vulgar esferográfica.
O rapaz
do táxi esteve renitente, mas acabou acedendo e fez tudo tal e qual Ildefonso
lhe pediu: que eu me perca, que eu não saiba onde me encontro.
A
mulher tinha dito: fará de modo a não ter noção de local aonde ela irá.
A
mesma mulher que lhe tinha perguntado: o senhor é medroso? e Ildefonso respondera
que medo, medo mesmo, tinha sido o que sentiu uma vez apenas, e nem fora
na guerra.
***
Virá
rodeada de luzes, tinha dito a mulher.
E
ainda assim, sabendo, Ildefonso sentiu o corpo contrair-se e o coração bater
descompassado, tanto que lhe parecia querer sair pela boca para em seguida ficar
retido entre as costelas, parado numa dor imensa que lhe tomava o peito: morto
o coração de Ildefonso que logo esbaforia aos saltos.
Ildefonso desenterra
as mãos e benze-se: a mão enluvada a traçar-lhe o peito com o sinal da cruz
enquanto Ildefonso lhe balbucia o nome. Madalena. E repete.
A
mulher tinha prometido que ela viria ao seu apelo, e Ildefonso balbucia, uma sílaba a seguir a outra sílaba.
Medo,
não, ele nunca tinha tido medo senão quando ela lhe disse: Ildefonso, estou grávida, e sorria-lhe.
Ildefonso nunca lhe contara dos exames. Estéril, tinha sido o diagnóstico.
Medo, mesmo medo, tinha sido aquele medo na alma, e mais que a mão desfeita lhe ficara o espírito. Um medo muito mais intenso do que o medo do estampido da mina, e era ou
morrer ou ficar estropiado.
As
luzes aproximam-se e Ildefonso continua a chamar-lhe o nome.
O
retrato dela viera estampado nas primeiras páginas. Também viera o retrato dele,
e acima, ao lado ou em baixo, em letras garrafais, o rapaz do táxi teria lido: anda a monte o médico que esfaqueou até à morte a esposa grávida.
Seriam
luzes e seriam anjos antes que ela aparecesse, tinha dito a mulher a rolar
pedrinhas sobre um pano.
0 comentários:
Postar um comentário