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quinta-feira, 14 de maio de 2015

Chá de gengibre




Ildefonso beberia uma chávena de chá e depois iria.
Nos cartões-de-visita tem escrito Mendes Cordeiro, médico. E, por baixo, em letras mais pequenas: obstetrícia e doenças de senhoras.
Beberia, sim, uma chávena de chá.
Ildefonso Mendes Cordeiro que já era canhoto antes do acidente usa sempre uma luva na mão com que antes se barbeava quando o fazia com Gillete ou com navalha, coisa que talvez tenha usado uma ou duas vezes. Ele sempre foi esquerdino para a máquina eléctrica e para tudo o resto, tanto que, no casamento, ia colocar a aliança no dedo da mão contrária de Madalena Andrade. Andariam ambos pelos vinte e quatro e corriam já os anos da guerra. Ildefonso foi mobilizado, mal terminou o curso.
Devemos evitar que um dia digamos desaforos um ao outro, escrevera-lhe Madalena numa carta imensa, folhas finíssimas deixando transparecer letras de um lado ao outro, palavras que se amalgamariam em discursos absurdos se fossem lidas com luz que incidisse em ângulo adequado sobre aquele papel de seda.
Deveremos não chorar a prole que nunca geraremos, assim pensara Ildefonso enquanto lhe dizia, numa carta lacónica, que sim, que ela tratasse do divórcio, mas se despedia com beijos ternos e saudade imensa do teu Id, diminutivo com que Madalena o tinha sempre tratado. E quando foi desmobilizado, tinham permanecido juntos.
Ildefonso beberia um chá fervendo ali mesmo, ao balcão, o açúcar deitado com a mesma mão com que o mexeria com a colherinha de plástico que tiraria do invólucro, os dentes da frente, ainda os que lhe tinham nascido por volta dos sete anos, ajudando a rasgar o papel. 
E não sorveria a beber um golinho. Madalena tinha horror a esse ruídoMas Ildefonso sopraria. Isso, faria. Um sopro sobre a superfície do líquido quente, qual ventinho suave que demoraria num gesto, todo ele, placebo. 
Ildefonso Mendes Cordeiro que se engasga, tosse, busca um guardanapo no suporte, e é um gesto aflito, demorado, esse de desentalar o papel, e ele tossicando para dentro da mão enluvada num cinzento rato, pele de uma boa marca trazida não saberia dizer de onde. Ildefonso com a mão esquerda atarantada e tossindo para a luva, inspira profundamente, acalma aquele engasgo, e pede um pingo de água que destempere o chá fervendo. 
O empregado traz-lhe um copinho raso, um vidro baço que Ildefonso segura com cuidado a verter apenas um fiozinho sobre o chá fumegante.
Gengibre, pedira ele, que gosta daquele travo doce-amargo.
E, sem querer perder o prazer que lhe dá o calor da loiça, Ildefonso envolve o bojo da chávena com as mãos, e fica saboreando o chá em golinhos esparsos.
Beberia um chá e depois iria, tinha ele pensado.
 

***


Em volta não havia horizonte. Descesse os olhos, e era o negro desde de ali até, nem Ildefonso sabia até onde era apenas escuridão e, lá no cimo, um céu pejado de pontos luminosos, uns dispersos, outros parecendo sobrepostos, uns mais cintilantes do que outros brilhando como pequeninos sóis.
Um céu estrelado, pensou Ildefonso já o carro se perdia num rumor rouco, e a escuridão rangia como ferrolho na cela do preso, e sentiu por instantes a respiração em descompasso e as mãos tremendo, mas logo se recompôs, o ar entrando e o ar sendo soprado e depois repetindo, e repetindo, até dar por ele a desejar uma aguardente, ele que não bebia desde aquela saída para o mato: todos mortos, excepto o condutor. O condutor e ele que ficara com a mão direita esfacelada.
Ildefonso respirando, calmo, o ar daquela noite dos deuses.
Terá que ser numa noite sem vento e sem lua, e terá que estar no ar uma temperatura de, ao menos, vinte graus, dissera a mulher que rodava entre os dedos uma enfiada de dentes de animal como se fossem contas de um rosário.
Ildefonso procurara ajuda e a mulher prometera que daria tudo certo.
De bruços sobre a areia morna, as mãos enterradas e o corpo ligeiramente apoiado sobre o lado esquerdo, de cada vez que move os dedos da mão esquerda e os que lhe sobram por baixo da luva, a areia desliza-lhe, fina, pelos  antebraços.
Ildefonso aguarda, seguindo os ensinamentos da mulher.
De vez em quando, parece distinguir a fralda branca dum vestido, mas é o branco, raro, de uma crista de onda; e um som que cuida ser de anjos é apenas o rumor das ondas deslizando espumas pela praia.
A mulher tinha-lhe dito: será melhor que não saiba onde.
E o táxi rodara em círculos, rolara descendo e roncara subindo.
O taxista era um rapaz bem-apessoado, mas receou-se: e se lhe acontece algum desastre?! e Ildefonso prometera-lhe que não iria acontecer fosse o que fosse e que não, que não seria caso de polícia. Era Ildefonso respondendo ao receio do taxista: depois, dizem que fui o último a vê-lo, e eu não quero porras com a justiça. 
Acabou por explicar-lhe que vinha encontrar-se com a esposa, que era assim uma espécie de jogo, mas não lhe falou em guerras, nem em anjos, nem noutros pormenores, e subiu a oferta, enquanto abria o livro de cheques e retirava a tampa duma vulgar esferográfica.
O rapaz do táxi esteve renitente, mas acabou acedendo e fez tudo tal e qual Ildefonso lhe pediu: que eu me perca, que eu não saiba onde me encontro.
A mulher tinha dito: fará de modo a não ter noção de local aonde ela irá.
A mesma mulher que lhe tinha perguntado: o senhor é medroso? e Ildefonso respondera que medo, medo mesmo, tinha sido o que sentiu uma vez apenas, e nem fora na guerra.


***

Virá rodeada de luzes, tinha dito a mulher.
E ainda assim, sabendo, Ildefonso sentiu o corpo contrair-se e o coração bater descompassado, tanto que lhe parecia querer sair pela boca para em seguida ficar retido entre as costelas, parado numa dor imensa que lhe tomava o peito: morto o coração de Ildefonso que logo esbaforia aos saltos.
Ildefonso desenterra as mãos e benze-se: a mão enluvada a traçar-lhe o peito com o sinal da cruz enquanto Ildefonso lhe balbucia o nome. Madalena. E repete.
A mulher tinha prometido que ela viria ao seu apelo, e Ildefonso balbucia, uma sílaba a seguir a outra sílaba.
Medo, não, ele nunca tinha tido medo senão quando ela lhe disse: Ildefonso, estou grávida, e sorria-lhe.
Ildefonso nunca lhe contara dos exames. Estéril, tinha sido o diagnóstico. 
Medo, mesmo medo, tinha sido aquele medo na alma, e mais que a mão desfeita lhe ficara o espírito. Um medo muito mais intenso do que o medo do estampido da mina, e era ou morrer ou ficar estropiado.
As luzes aproximam-se e Ildefonso continua a chamar-lhe o nome.
O retrato dela viera estampado nas primeiras páginas. Também viera o retrato dele, e acima, ao lado ou em baixo, em letras garrafais, o rapaz do táxi teria lido: anda a monte o médico que esfaqueou até à morte a esposa grávida.
Seriam luzes e seriam anjos antes que ela aparecesse, tinha dito a mulher a rolar pedrinhas sobre um pano.









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