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sábado, 21 de março de 2015

Os Traidores

Foto de  Amber Inhim (Flickr)
O ambiente apresentava um clima de montanha em virtude da brisa gélida que o ar-condicionado cuspia. A temperatura agradável do quarto não impedia porém que o Doutor Paranhos suasse em abundância. “Doutor!” Rosnou mentalmente Sueli. “Só se for em safadeza. Todo patrão, mesmo semi-alfabetizado e a quilômetros de um diploma, vira Doutor para os subalternos explorados”, filosofava a secretária,  nua, por debaixo do balofo Paranhos que a esmagava com o peso do seu corpo e da sua luxúria.
A cama do motel barato sacolejava ao ritmo dos bruscos movimentos sexuais do Doutor Paranhos que, no decorrer do ato, emitiu alguns grunhidos de prazer, revirou os olhos, trincou os dentes e desabou pesadamente sobre Sueli. A secretária esforçou-se para virá-lo de lado e, após livrar-se do peso que quase a sufocara, respirou fortemente em busca do oxigênio salvador para em seguida constatar que o Doutor Paranhos morrera. O homem não resistira. Os prazeres da cama o haviam liquidado.
Sueli andou desvairada ao redor do quarto, tentando por os nervos no lugar. Contemplando o cadáver, imaginou-se acusada de assassinato, protagonista de um escândalo. Todos descobririam o seu caso com o patrão. E como encarar Dona Laurinda, esposa do Doutor Paranhos, aquela genuína lady? Procurou em sua bolsa um comprimido de calmante, ingerindo-o com uma sobra de cerveja que ficara numa latinha consumida pelo finado. A seguir, ligou para a fábrica, atrás do Almeida.
— Almeida? Sueli. Aconteceu uma tragédia!
— O que houve? Onde você está?
— Em um motel do Centro. Doutor Paranhos morreu, parece coração.
Breve pausa do outro lado da linha.
 — Se acalme e me passa o endereço que eu to indo pra aí. Temos que tirá-lo deste lugar e preservar Dona Laurinda que tem o Doutor na conta de santo.
Almeida trabalhava no setor administrativo da fábrica. Adepto da filosofia do puxa-saquismo e da ciência da adulação, tornara-se em poucos anos o homem de confiança do Paranhos, conhecedor de todas as suas falcatruas nos negócios, acobertador de suas estripulias sexuais com as operárias. Chorou sinceramente alguns minutos a morte do patrão, por quem nutria um subserviente apreço e decidiu que, pela boa imagem da empresa, ele teria um fim digno, longe dos mexericos que um falecimento na cama de um motel de terceira categoria em companhia da secretária de quinta certamente provocaria.
Chegou ao motel trazendo a reboque outro funcionário, famoso por sua discrição. Sueli os recebeu chorosa, vestida. “Uma pena”, lamentou Almeida, desejoso em conhecer como seriam os peitinhos da Sueli que no ambiente da fábrica não passavam de um mero relevo, insinuante, escondido por debaixo das blusas. Doutor Paranhos curiosamente também se encontrava vestido, estendido na cama.
— Sempre ouvi falar que o morto quando esfria fica duro feito pedra, parecendo um bonequinho de chumbo e que é o maior sufoco botar uma roupa no sujeito. Então, eu vesti o Doutor para evitar que ele passasse a vergonha de sair nu no rabecão – Desculpou-se a constrangida secretária.
Almeida foi a beirada da cama e encarou o defunto. O Doutor aparentava sorrir. “Pela cara de sacana percebe-se que o senhor aproveitou muito bem os seus últimos momentos de vida” – pensou.
Os dois homens, ajudados por Sueli, pegaram Paranhos pelos braços e o carregaram até o carro. Aos funcionários do motel, explicaram que o empresário estava vivo, mas passando muito mal e que o levariam para uma emergência, o que fizeram de fato. Doutor Paranhos deu entrada no hospital morto. Falecera no caminho de volta para o trabalho, após passar mal em um restaurante onde almoçava com os três empregados. Esta foi a versão oficial dada à viúva e ao pessoal da empresa.
Velório de primeira, caixão luxuoso rodeado por incontáveis coroas de flores, capela apinhada de gente para dar o último adeus ao agora saudoso Paranhos. O esquife seria carregado até o jazigo da família por membros da Irmandade da Ordem Terceira do Carmo, da qual o defunto fora colaborador. Dona Laurinda, trajando preto, carpia seu querido esposo. Muitos elogiaram as vestes da viúva, pois o luto fechado não era comum nos dias de hoje. Postado ao lado da enviuvada, Almeida recebia os cumprimentos pelo bom gosto na organização do fúnebre evento.
Três jovens mulheres aproximaram-se do caixão e iniciaram em conjunto um pranto descontrolado, provocando comentários ligeiramente indignados por parte dos familiares do Paranhos. Choravam copiosamente em trinca, como que se um querido pai, estimado avô, ou um tio predileto houvessem perdido.
Dona Laurinda discretamente cutucou o Almeida.
 — Qual das três é a tal de Sueli?
 — A do meio, de vestido sóbrio.
 — E as outras duas? Também dormiam com o safado do Paranhos?
— Sim senhora. A de decote escandaloso e perfume barato é Dona Clotilde, do setor de compras, a com cara de Madalena arrependida é a Maria de Fátima, uma das operárias.
Dona Laurinda armou-se de um olhar de profunda repulsa, contudo, tencionando manter as aparências e ser superior as suas ex-rivais, represou o ódio.
— Sou grata por sua dedicação Almeida. A propósito, faça-me a gentileza de passar amanhã em minha residência. Precisamos conversar sobre o futuro da fábrica.
“Rei morto, Rainha posta” – comemorou o bajulador.
No dia seguinte ao enterro, Almeida foi à casa da viúva conforme o combinado. Inesperadamente, encontrou uma mulher sensualmente metida dentro de um decotado vestido florido. A princípio, tal ousadia lhe pareceu uma afronta à memória do Doutor Paranhos, mas ao prestar atenção no corpo carnudo de Laurinda, cinqüentenário mas ainda possuidor de boas formas e relembrando o quanto o falecido a traíra nestes últimos anos, Almeida relaxou nos escrúpulos.
Conversaram sobre os problemas da fábrica, abriram uma garrafa de vinho, falaram mal do morto e fizeram amor por horas a fio no chão da sala de estar. O desempenho sexual da viúva surpreendeu Almeida. Com uma mulher fogosa como aquela dentro de casa, o que o Doutor Paranhos procurava em suas amantes?
Enquanto se vestiam, ainda ofegantes em razão da volúpia, Laurinda lhe ordenou:
— Amanhã, demita a tal de Sueli. Pague os direitos da vagabunda.
Transcorrida uma semana do erótico encontro, Almeida recebeu no trabalho novo telefonema de Dona Laurinda, mandando que ele fosse imediatamente a sua casa. Desligou eufórico. O que acontecera depois do enterro não fora um momento fortuito. A viúva o queria como homem. O telefonema era a prova incontestável. Quem sabe os dois se casariam e, ou invés de uma simples gerência como ambicionava, ele não se tornaria dono daquela fábrica? E Laurinda, apesar da idade, possuía ainda alguns atributos estéticos: “Uma boa meia-sola e ela agüenta mais uns dois anos”,  gracejou, radiante pela sorte que havia pousado em sua vida.
Mal tocou a campainha, foi recebido pela dona da fábrica trajando apenas um conjunto de calcinha e sutiã negros, como convinha a uma enlutada. A viúva, sedenta, praticamente  o violentou no chão da sala. Ao final da cópula, Laurinda mandou:
— Amanhã, demita a tal da Clotilde. E pague os direitos da vagabunda.
Intervalo de mais uma semana e Almeida foi novamente requisitado a casa da viúva. Neste dia, nem roupas ela se deu ao trabalho de vestir. Recebeu o amante nua, em sua sala de estar. Fizeram amor com selvageria e depois do gozo o próprio Almeida se adiantou.
 — Despeço a Maria de Fátima?
 — Sim, e pague os direitos daquela vagabunda com cara de Madalena arrependida.
O novo chamamento de Dona Laurinda desta vez não demorou mais do que dois dias. Almeida chegou a casa da amante cantarolando, com a cabeça recheada de idéias e planos gerenciais. Tencionava mudar tudo na fábrica, fazer as coisas funcionarem a sua maneira. Ia dobrar o capital daquela empresa. Mas antes, convenceria a viúva da necessidade de fazerem um cruzeiro pelo Mar do Caribe, a título de lua-de-mel, pois ele precisaria de um descanso antes de assumir os negócios.
Laurinda o recepcionou friamente. Vestia luto fechado. Estranhando o fato, Almeida, respeitoso, sentou-se no sofá cruzando a perna esquerda de modo que não exibisse a sola do sapato. A viúva acomodou-se de maneira elegante em uma poltrona a sua frente e falou:
— Senhor Almeida. Em respeito aos longos anos de dedicação a minha empresa, eu o chamei aqui para evitar o constrangimento de despedi-lo na frente de todo o pessoal da fábrica. Assim, sugiro que o senhor peça demissão, sem direitos, e evite cenas desagradáveis.
Impactado pela notícia, Almeida somente conseguiu, em meio a balbucios, perguntar o porquê de estar indo para o olho da rua. Laurinda, vitoriosa, cortante feito uma navalha, esclareceu  serenamente.
— É impossível manter em nossos quadros alguém que, conhecendo os segredos do seu patrão, o trai revelando suas torpezas sem que a criatura ainda nem tenha baixado a sepultura. Depois, trai as próprias colegas de trabalho, dedurando-as. E ainda trai pela segunda vez o seu patrão, dormindo com a sua viúva na vil intenção de obter vantagens em sua carreira. A traição impregna o seu caráter senhor Almeida. Como confiar no senhor? Mais tarde serei eu a traída. Passe muito bem!
No dia seguinte, os funcionários da fábrica foram surpreendidos pela carta de demissão do Almeida. Mais admirados ficaram ao descobrirem que o ele renunciara aos seus direitos trabalhistas.


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Zulmar Lopes
Carioca, jornalista, contista e aspirante a romancista, Zulmar Lopes tem um punhado de prêmios literários, a maioria de nenhuma importância. Membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (ACL). Roteirista do curta de animação “Chapeuzinho Adolescente”. Em 2011 lançou o livro de contos “O Cheiro da Carne Queimada”. Finalmente concluiu o maldito romance cujo pano de fundo é o carnaval carioca e está na expectativa de que alguma editora incauta se atreva a publicá-lo.
todo dia 21


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