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sexta-feira, 20 de março de 2015

O SANTO MISSIONÁRIO

- Serração baixa é sol que racha.

Olho o céu e lembro da minha Vó Rosa proferindo sentenças imortais.
Incorrigível otimista, pós graduada, mestra e doutora em saber viver.
Para ela não se criava tempo ruim. Durou pouco: 96 anos.
Nunca baqueou. Nunca sofreu desdita que não transformasse em energia.
Nunca choveu no seu pique nique.

Desde que moro na serra, não há um dia em que não sinto sua voz cochichando
para mim de algum lugar que nem sei onde.  Talvez venha do jardim, do alto das
montanhas que me acolhem, na copa daquelas árvores, do riacho que canta entre
as pedras, sabe-se lá. Não sou médium, nem ateu, muito pelo contrário.
É Vó Rosa que me dá conselhos e carraspanas, que sopra nuvens para o sol entrar.
É Vó Rosa de lás e acolás, que me exala pensamentos nem sempre perfumados.

- Fazer churrasco praqueles chatos? Que merda, hein, Gilzinho?

Quase na hora de acender o carvão, o sol se esconde entre as nuvens densas.
Vai chover. Não vai chover. Vai. Não vai. Vai vindo.
Os chuviscos começam de viés pelo lado aberto da grelha. Molham os espetos, diabo!
Molham meu rosto e o avental com uma estampa saliente: “tem picanha na chuleta”.
Socorro, Vó Rosa.

- Essa cobertura na churrasqueira foi mal construída. Posso fazer nada.

Venta de lado, venta de cima, venta por baixo, chove fino, chove grosso.
Venta que venta, chove que chove. E agora, Vó?

- Protege essa carne, cobre o carvão com plástico. Tá furado mais dá pro gasto.

Chegaram.
Minha sogra, meu sogro. Dona Belinha e Seu Ademar, a ispilicute fuinha e o Ze Colmeia
fanfarrão. Como tão antagônicos de corpo e alma podem arrastar um casamento? Podem.
Tanto podem que buzinam no portão com cara de casal feliz, que revê a filha depois
de longo cruzeiro gira mundo. Trazem um arco iris no céu querendo azular e um sol
querendo se chegar. Foi Vó Rosa. Que foi, foi.

Se Silvinha tivesse rabo, corria abanando o dito ao portão, comboiando o carro
até estacionar. Ela o rodeia saltitante, não sabe que porta abre primeiro.
E fala querendo festa e fuçando novidade.

- Mamãe, papai! Que saudade! Fizeram boa viagem? Me contem tudo.
Gilbrando até pensou que vocês não viessem mais. Olha só a cara dele.

Do alto do platô, um aceno sem graça. Eu. Avental sujo de carvão embaçando
a indecência da estampa. Unhas entranhadas de sangue e sal grosso,
recém saídas de um besuntar na picanha. O espetáculo promete.
Teremos também, senhores: lombinho, costelinha, linguiça, tiras de
fraldinha, ponta de maminha e um par de peitinhos de frango sem tempero
e insosso para velha hipertensa. Pelo menos Seu Ademar é Seu Ademar.

- Chega mais, sogrão! Já tem a maldita te esperando no copinho!

Levanto a mão direita, saúdo o sogro salivando pelo trago inicial.

- Segura essa maldita aí, Gilbrando! Belinha tem presente para casa.

Desço até a varanda. Da bolsa da sogra sai um santo. Estilo barroco esculpido
em sândalo, tamanho de uma garrafa de Coca-Cola, que Silvinha apalpa contrita.

- Que coisa linda mamãe... Ái, até sinto arrepio gostoso só de tocar...

Ela fecha os olhos e acaricia rosto e têmporas, como se recebesse carícias divinas.
A mãe junta as mãos num Namastê e emenda com sinal da cruz.

- É para abençoar a casa, minha filha, perfumar a alma e espantar os maus bofes.
Por que ela conclui a frase olhando para mim? Disparo um sorriso cínico.

- Tudo bem, minha sogra?
- Remando como Deus quer.

Falar em Deus com cara amarrada sem olhos nos olhos é típico da megera que implicou
comigo desde o dia em que Silvinha me apresentou à família.
Quando conheci a santa inquisição.

- Muito bem, o que o rapaz faz da vida?
- Namoro a sua filha.
- Debochado.

E nunca mais me dirigiu a palavra. Nem no altar quando Seu Ademar me entregou a filha,
abraçando forte e bafejando no meu ouvido.

- Muito cuidado com Silvinha.
- Fique certo, Seu Ademar, sua filha é uma princesa.
- Não é por isso, seu bocó. O namorado anterior tomou um porre e me agradeceu pela filha.
Disse que na cama era um tufão de dar canseira e olheira. Dei um murro na cara dele,
nunca mais apareceu. E você, já foi lá? Foi? Sentiu o furor da menina?

Fui sufocado pelo abraço, pelo bafo de uísque ordináfrio e pela situação.
E salvo pela sogra, quem diria?

- Ademar, larga o traste, Ademar. O padre está esperando.

Meu sogro, minha sogra. O bom, a má e a feia em duas pessoas.
Quando vejo os dois juntos, penso no filme e me entra a música.
Ta nan ta nan nan, taaaaaaan.... Uáun Uáunnn...

Agora estão aqui, na nossa casa na serra, produto de uma bolada no mercado financeiro,
daquelas que fosse eu um argentário compulsivo jogava para ganhar mais, mais e mais,
ou perder tudo de vez. Silvinha me convenceu em parar com a vida louca e rouca
da Bolsa de Valores.

- A tecnologia faz dinheiro para você nos sites de investimento.
- Uma casa na serra, pode ser?

Um sonho. De quem não pode ter filhos – lamentos passados, vida que segue -,
mas rosas, geraniáceas e hortênsias para cuidar e criar. Perfeito para Silvinha,
bióloga formada que descambou para a jardinagem. O sítio não é luxuoso,
mas tem o nosso jeito. A casa de três quartos, salão com lareira, varandão
em volta, e um platô bem escorado logo acima, que se alcança por um caminho de
pedras sobre a grama rentinha, parece tapete. Lá no alto, o quiosque aberto
com churrasqueira, fogão de lenha, um armário rústico com coleção de cachaça
e alguns vinhos médios deitados em sossego.
Pena que a cobertura não é lá essas coisas.

- Seu Ademar, enquanto as duas estão lá embaixo, experimenta essa aqui.
E me conta das moças de Amsterdam.
- Nem te conto, Gil. Amsterdam, Londres, Paris, Munique, Estocolmo.
As melhores putas do mundo. Só filé de ótimo custo-benefício.
Gastei euros e mais euros, e pra lá de três caixas de Viagra.
- E dona Belinha?
- Museu. Museu. Museu. Acho que ela deveria morar num museu.

Seu Ademar era dos meus. Falava o que eu pensava. Bebia o que eu bebia.
Sempre contei com ele nas surdinas da vida.

- Só não pode uma coisa, rapaz: trair minha filha. Nem em punheta, combinado?

Isso foi na festa do casamento. Dez anos depois, enquanto abano o carvão,
a sabedoria:

-  Agora punheta já pode. Vai, fecha os olhos e faz o que eu não consigo.
Não vou gastar o comprimido azulzinho com isso.
- Que é isso, Seu Ademar... só tenho pensamentos para sua filha.
- Quem é mentireiro não acende braseiro.
- Essa eu não conhecia, Seu Ademar.
- Nem eu. Alguém me soprou não sei de onde.

Seu Ademar olhou em volta. O arvoredo, as montanhas, o gigante de pedra arqueozóica
estriada pelas cascatas, o céu querendo ficar azul, a despeito das nuvens que passam
como chantilis. Seria o silêncio absoluto, não fossem mãe e filha matraqueando na varanda,
e o choro desesperado da ventarola sobre o carvão que não pega.
Na varanda, rasgam solenes o embrulho enfeitado.

- Minha filha, essa obra é uma réplica dos santos das missões jesuítas,
esculpida em sândalo. Olha o que fui encontrar num brechó balinês em Londres.
Uma arte barroca cristã. Veja só.
- Vai que foi um budista que esculpiu.
- Foi o que pensei. Por isso achei tão rara e peculiar.
Disse o vendedor oriental que ele traz bons ventos,
além do cheiro de paz que emana.
- Papai sabe disso?
- O ateu excomungado? O pragmático materialista? Nem tomou conhecimento.
Estava por outras ruelas de Londres, diz que fingindo se Sherlock Holmes,
investigando canto por canto. Assim foi a viagem toda, cidade por cidade.
Deixa ele. Tantos anos que aturo suas invencionices.
- Quantos anos?
- Acho que 43, 44, 45, 46... perdi a conta. E você com o traste?
- Não começa a falar do Gil, mamãe. Se é para me chatear, assim não vai ter churrasco.
- Olha só, pelo jeito que aqueles dois abanam acho melhor fritar um ovo.

Decidiram por uma incursão à cozinha. Reviver tempos e faíscas de mãe e filha.

- Vou fazer uma pastinha, minha filha. Tem sopa de cebola e creme de leite?
- Que tem, tem. Mas que coisa mais antiga, mãe!

Belinha fareja a dispensa.

- Pela dinheirama que seu marido ganhou não sei como, essa dispensa podia estar mais farta.
- Bolsa de Valores, mãe. Sabe o que é Bolsa de Valores? Sabe o que é internet?
- Rhun, rhum... sei, sei.
- Para de muxoxo! Caralho! Essa sua picuinha com o Gil me torra o saco, toda vez é isso,
aliás, sempre foi assim. Que merda! Quer fuder com meu casamento?!
Quer fuder com a porra do churrasco?!

Belinha paralisou com creme de leite e pacote de sopa de cebola, cada um em cada mão.
Silenciosos segundos depois, fuzilou Silvinha com o olhar e aflautou a voz.

- Minha filhinha, você aprendeu esse português com esse seu marido?

Silvinha contou até 10, 20, 30.

- Desculpe, não vamos estragar o fim de semana.

Seu Ademar e eu revezávamos na abanação. A umidade era mais forte que o frágil calor.
As brasas se assanhavam, mas logo adormeciam. De repente, ouço Vó Rosa.

- Eu não acredito que vocês vão fazer isso.

Percebi que Seu Ademar olhava para mim com um sorriso travesso.
Parecia que também tinha ouvido a voz não sei de onde. E eu não acreditei
quando ele foi e fez.

- O presente, Seu Ademar?!
- Cala a boca, infeliz. Elas estão na cozinha. Vai que ouvem.

Instantes depois, a combustão ligeira no sândalo se alastrou entre as brasas,
como se um fogo milagroso viesse nos salvar.

Todos em volta da mesa de tora crua, toalha xadrez e algumas travessas rústicas
de acompanhamentos tradicionais: arroz, farofa, batata frita, essas coisas.
Dona Belinha nem me agradeceu quando servi no seu prato o peito de frango grelhado,
tatuado pelas tiras da grelha. Estava dourado e listrado, como os que aparecem
nas revistas de gastronomia.

- Arroz, mamãe?
- Não, minha filha. Quero degustar esse franguinho puro para não macular o sabor.
Tem um gostinho perfumado, diferente, parece um aroma que deixa a gente... sei lá...
um cheirinho especial, me lembra, me lembra... não me lembro...
enfim, parabéns, meu genro!

Havia uma ternura inédita flutuando entre nós. Trocamos olhares cúmplices e
cínicos, eu e Seu Ademar. Todos desfrutávamos de uma sensação inebriante contagiante.
As carnes fatiadas foram servidas com um tempero inesperado na casquinha.
Assim seguiram a linguiça, a fraldinha, as costelas, o lombinho.
Tudo assado e defumado como se algo divino tivesse abençoado aquela tarde.
Deu-se um silêncio respeitoso e prazeroso de quem degustava a paz.
Vi quando Seu Ademar saboreava o repasto contemplando a montanha e a natureza,
com um leve sorriso de menino travesso no rosto de um velho encachaçado.
Vi Silvinha e a mãe trocando sorrisos e arrulhos indecifráveis.
Vi um olhar agradecido de Dona Belinha - eu juro que vi - me abraçando de longe.
Mas só eu – e isso dou como certo - só eu ouvi a voz inconfundível e
imortal que vinha sei lá de onde:

- Você e esse seu sogro não prestam. Nem santo respeitam mais.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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