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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

As pombas da rodoviária

Duas senhoras que aguardam a chegada do coletivo 1075 prevista para as vinte horas falam do clima, da política e da inconveniência das pombas que andam e voam rasantes perto das cabeças, das taças de café com leite e das torradas com margarina, presunto e queijo, na rodoviária. Comparam as pombas aos ratos e o efeito imediato da imagem é de contração em ambas as caras, rugas ainda mais acentuadas na testa e ao redor da boca, o nojo compartilhado. Elas têm a urgência dos que sentem saudade, uma ânsia de encontro que se deixa abalar pela impertinência das pombas, agora contando já seis, ciscando perto das sapatilhas das duas. Enxotam os bichos, batem os pés na calçada, e reclamam que a prefeitura é incompetente e não vê o absurdo, a porcalhada que é esse bando de pássaros sujos importunando as pessoas.

Naquele lugar de chegar e partir, as pombas ficam. Ficam sobre a tela de proteção logo abaixo do telhado, de madeiramento que grita manutenção, ficam ao redor dos caixas eletrônicos, entre os bancos de ferro, ficam em cima das mesas plásticas das lancherias, bicando restos de sanduíche, ficam pisando e repisando os próprios cocôs secos, ficam fazendo número e fedor, o quadro cinza e branco e esverdinhado de penas e bico. As senhoras erguem as cabeças e correm os olhos pelas paredes e instalações internas e externas do prédio, mais escandalizadas, como permitem tal infestação?

Os taxistas seguem à espera do próximo desembarque, seus carros brancos estacionados na área reservada são alvos fáceis de dejetos, o pipoqueiro e seu tapapó também, os cães deitados ao pé da lixeira idem. As duas senhoras se importam com os riscos, por todos. Faltam cinco minutos para o ônibus apontar na esquina e se dirigir ao box oito. Ainda bem, comentam com alívio. Quando a porta do veículo abrir, em algum momento o filho caçula de uma e a sobrinha de outra vão descer, reconhecer os rostos familiares, pegar suas bagagens e por fim ao difícil exercício que as senhoras fazem de suportar as pombas, a presença constrangedora das pombas. As senhoras, como a maioria esmagadora das pessoas, estão de passagem. Querem deixar logo a plataforma.

Os primeiros passageiros começam a sair e a se encaminhar ao bagageiro para buscar malas e mochilas. Os esperados saem. Há abraços, há pressa, há reclamação a respeito das pombas. Uma voz alta corta as conversas e faz as cabeças virarem em sua direção. O homem que esfarela um pão dormido e está rodeado de pombas como se ele mesmo fosse uma diz, solene:

- Bem-vindos a cidade do Rio Grande, berço do Estado, terra do vento, do peixe e do polo naval. Aproveitem as paisagens daqui, a praia do Cassino e as vagonetas, vejam o município em pleno desenvolvimento. Tenham uma boa noite! – e se vai em direção aos banheiros públicos, ajeitando a touca de lã, deixando aves por rastro. Os passageiros e seus acompanhantes dispersam imediatamente, os táxis são ocupados e dão início às corridas, o motorista se fecha no ônibus, e as senhoras se despedem ligeiras, ultrajadas com a ousadia das pombas da rodoviária.

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Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
todo dia 22


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