Joaquim Bispo
Quando Crpt se religou,
encontrou-se sentado na zona de acesso às partidas aéreas da cidade arqueológica
de Ur. De imediato, detetou o imperativo de entregar uma mensagem impregnada na
área encriptada, dirigida ao arqueólogo “Gilgamesh”. A instrução de ação era
clara — “A mensagem deve chegar à Casa Branca na véspera de Natal do ano 2899” —,
mas o que isso significava era um completo enigma. Por enquanto.
Tratou de consultar
mentalmente a enciclopédia interna de acesso expedito. Ficou a saber que Natal
era uma primitiva data religiosa, que se transformara numa festividade frívola,
realizada pelo solstício de inverno do hemisfério norte, e que o significado
principal de Casa Branca era o de um antigo edifício de comando mundial situado
numa das zonas irradiadas na última Guerra do Petróleo. A escavação arqueológica
do local iniciara-se havia uns vinte anos e era uma das mais prometedoras da
Zona Oriental.
Para o esclarecimento de data
tão bizarra, não havia qualquer pista. Decorria o ano 643 da era de Wu Wang e,
seguindo a instrução à risca, tinha mais que tempo de a cumprir — 2256 anos e
dois dias, mais precisamente. Isso era uma eternidade. Provavelmente, nem o seu
corpo duraria tanto, apesar de ser fabricado com as mais dúcteis e resistentes
ligas biometálicas e com tratamentos autorregeneradores. O seu trabalho quase
permanente nas zonas irradiadas expunha-o a corrosões intensas. “Para quê,
enviar uma mensagem com um prazo de entrega de milénios?”, perguntava-se. Havia,
com certeza, um erro na data indicada. Ou, quiçá, uma charada a resolver na
própria instrução de ação, que o destinatário sob pseudónimo prenunciava.
Qualquer das hipóteses era pouco verosímil, dado o rigor normativo habitual das
comunicações. Quando acontecia um erro, era invariavelmente da responsabilidade
de um Homem.
Uma pergunta começou a dominá-lo:
“o que esperaria dele o comando da Delegação de Kandahar, numa situação como
esta?” Enviou um pedido mental de iluminação ao Conselho Central, mas, mais uma
vez, o silêncio foi a resposta. Dantes, acreditava obter revelação, quando
pedia ajuda em momentos de incerteza, mas havia muito tempo que uma ausência
absoluta de sinal era a norma. Sentiu-se abandonado por um momento, mas depois
reagiu, confiando no permanente controlo da Delegação, ainda que silencioso,
sobre o seu livre-arbítrio.
O melhor a fazer seria
entregar a mensagem, o quanto antes. Mas, interrogava-se: “por que levar uma
mensagem a uma zona irradiada, proveniente de outra zona irradiada, mas com
escavações apontando para épocas tão diferentes? Por que tanto enigma na
instrução de entrega da mensagem?” É certo que não lhe competia questionar, mas
obedecer. Devia fazê-lo, embora sentisse que, apesar do imperativo subjacente, tinha
autonomia para desobedecer. Mas, se contrariasse este, podia correr o risco de
fazer algo pernicioso para o Homem. E isso era o pecado máximo. Por outro lado,
a mensagem saía muito da rotina, a começar por não conseguir identificar a entidade
que inculcara a mensagem encriptada no seu âmago.
O seu trabalho, nos
últimos meses, era transportar informação classificada entre o centro
arqueológico de Ur e a Central. Já havia levado várias mensagens à capital
terrestre, com resultados das escavações arqueológicas nos níveis sumérios e,
uma ou outra vez, sobre os progressos da descontaminação na região. Lembrava-se
de todas essas viagens, mas, desta vez, só se recordava da preparação da viagem
para a Região do Meio e de se religar já na estação aérea, com instruções para
se dirigir à Zona Oriental.
Obedecendo à imposição
imanente, cuja origem desconhecia, estaria a servir o Conselho Central dos 21
sábios de Wuhan ou a ser usado para fins proibidos, talvez por uma entidade revoltosa?
Esta última intuição do seu intelecto perturbou-o. O que menos queria era ser
manipulado por entidades perniciosas para os Homens.
Pensou, computou algumas
das hipóteses prováveis para a explicação da situação e decidiu-se. Não
seguiria para a Zona Oriental sem ter algumas pistas sobre o teor da mensagem
que transportava, ou a entidade de origem; também não iria a Kandahar revelar
as suas hesitações sobre a missão de que estava incumbido; nem voltaria à
escavação de Ur a queixar-se de angústia e a tentar obter respostas. A existir
uma hipotética alteração da sua estrutura inconsciente, provavelmente, fora lá
feita.
Como que respondendo a
esta intenção de desobediência, uma angústia asfixiante invadiu-o. Olhou em
volta à procura de ajuda, mas apenas ao longe divisou outras unidades
cibernéticas autónomas. Com dificuldade ligou mentalmente a unidade de energia
sobressalente e saiu para o exterior. O sol atingiu inúmeras das nanocélulas
fotovoltaicas embebidas no revestimento, o que lhe transmitiu um novo ânimo, e
a angústia desvaneceu-se.
Iria a Bagdad pedir ajuda
e conselho a uma unidade cibernética de pesquisa e deteção, a única a quem alguma
vez se afeiçoara, quando ela prestara serviço em Ur, uns dois anos antes. Era
muito estimada na escavação e um arqueólogo Homem chegou a apaixonar-se por
ela. A Delegação agiu sem demora e os amantes foram deslocados para escavações
separadas. Agora, dedicava-se à descoberta, identificação e recuperação dos
objetos do antigo museu de Bagdad, dispersos aquando duma invasão oriental,
numa das primeiras Guerras do Petróleo, especialização com que fora entretanto impregnada.
A consciência cibernética
dele proibia que lhe fizesse uma revelação integral das instruções recebidas, mas
avaliou que era baixa a probabilidade de a divulgação restrita da instrução
comprometer a missão. Aliás, sem ajuda, o desempenho da missão podia estar em
risco. O máximo que podia acontecer — acreditava —, era reeducarem-lhe o
processador central e mergulhar temporariamente na ausência de computação e
mesmo de funcionamento elementar. O máximo era demasiado, mas estava disposto a
sacrificar-se por um límpido serviço pelo Conselho, que por fim reconheceria os
seus bons serviços e lhe devolveria a ligação.
Psqs recebeu-o com
algumas manifestações de agrado, o que reconfortou Crpt. Analisaram ambos a
situação deste e também Psqs estranhou a instrução que Crpt recebera. O protocolo
de origem parecia regular, mas vago — Base Ur —, e os dados individualizados do
emissor estavam encriptados.
Ela lembrou-se, então, de
calcular a que ano da era em vigor na época das guerras do petróleo corresponderia
o ano em curso. Intuição certeira: 2899. O que poderia denotar uma instrução,
toda ela codificada com referências de mais de 600 anos? Seita cultora do
passado? Brincadeira de técnicos cibernéticos? Casa Branca seria uma metáfora
para o atual edifício das decisões mundiais em Wuhan? Por que Natal?
Psqs ficou silenciosa e
introspetiva durante uns momentos. Depois, revelou que tinha acesso a um
descodificador de mensagens encriptadas pelo método Ling; que se ele quisesse,
podiam tentar abrir a mensagem. Entre o pecado cibernético e o perigo de estar
a ser usado para trair o Conselho, Crpt optou pela transgressão.
O descodificador era
adequado. Cautelosamente, começaram por aceder à identidade do emissor: “Arq. Lalit
Chandra”. Ambos reconheceram o nome do vaidoso arqueólogo de Ur, especialista
da civilização suméria, que denunciara o envolvimento do arqueólogo Gellert com
Psqs. Dizia-se que, secretamente, realizava rituais de religiões antigas. A
seguir, descodificaram a mensagem encriptada:
“Gilgamesh”!
Soube que foste instalado nessa base de elite, depois daquele
episódio lamentável, com a nossa “amiga” cibernética. Se estás a ler esta
mensagem, é sinal de que a lata eletrónica onde segue é tão arguta como eu
suspeitava. Tive de criar uns enigmas na instrução, para contornar o controlo
de comunicações.
“Gilgamesh”, grande amigo! “Enkidu” não te esqueceu. Como
podia? Fazíamos uma equipe imbatível, coesa em todos os aspetos, que ainda hoje
é lembrada em Ur. Andávamos sempre juntos, adorávamos estar juntos, por isso
nos deram estes epítetos mitológicos que adotámos com gosto. Éramos tão
felizes!
Não, “Gilgamesh”, “Enkidu” não te esqueceu. Nem te perdoou. Como
pudeste rejeitar-me, envolver-te com… Nem sequer era uma pessoa! Não passava de
uma criação de engenheiros cibernéticos, uma escavadora com mamas. Nunca
aceitei a rejeição, nunca a aceitarei.
Presumo que estejas bem instalado, se calhar bem acompanhado.
Eu? Chafurdo na lama mesopotâmica. Sozinho. Terrivelmente triste. Sem um
carinho. Não aguento mais. Por isso te envio esta lata, com um voto de sonhos
felizes. Bye!
Os amigos perceberam de
imediato o que estava prestes a acontecer e só puderam abraçar-se, antes que a
explosão levasse metade do edifício onde se localizava o alojamento de Psqs.
Na Delegação de controlo
cibernético de Kandahar, perdeu-se, de repente, o sinal de duas unidades em
Bagdad.
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Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77
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4 comentários:
muito bom, Joaquim Duarte, sem nada que empecilhe (muito pelo ncontrário) uma pessoa que nem tem grande simpatia pelo género
Impressionante alguém conseguir criar essa ficção toda! É um gênero que não consigo. Parabéns!
Parabéns, um texto pra lá de criativo!
Obrigado, Maria, Cinthia, cecilia. Que as incertezas não assolem as vossas impregnações.
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