Mentir sempre foi uma das minhas
benevolências mais praticadas com a minha mãe. Tudo o que eu como filho não
poderia suportar era o lamento materno fustigado pela decomposição familiar.
Quem olhava para a mesa da cozinha poderia imaginar que a miséria estava
distante. Uma toalha feita com sobras de tecido era cerzida com a delicadeza
daqueles dedos desgastados de D. Lucia. Nas prateleiras ao redor daquele espaço
umas tábuas fixadas na parede sustentavam poucas panelas velhas e, várias latas
de produtos dos quais nossas línguas nunca tinham sentido o gosto.
A infância foi cercada de
imprevistos e dores – eu e meus outros quatro irmãos, nunca pudemos frenquentar
o convívio social – restava apenas a escola. Que nos serviu por pouco tempo, assim
que meu irmão mais velho chegou aos doze anos, precisou parar de estudar. Com
isso, meu pai embestou em tirar os outros três da escola, pois acreditava que
ajudando em casa seriamos mais homens. Porém, com o passar dos anos, tivemos
algumas mortes, e a mais significativa foi a de S. Baltazar – nosso pai.
Nesta época eu tinha oito anos,
não sabia direito nada, apenas sabia do homem rude, que maltratava a minha mãe,
e aos poucos perdeu praticamente tudo o que tinha construído com trabalho em
jogatinas e mulheres. As terras de Santa Helena estavam reduzidas ao espaço
suficiente para a família deter a degradação sofrida.
As mentiras sempre estiveram
presentes em casa – lembro de escutar meu irmão mais velho dizer que os animais
da propriedade foram roubados, lógico isso inocentava o pai. Com a ausência de
Baltazar fomos todos para o comércio informal – o primogênito trabalhava em uma
frutaria, logo cairia em desgraça e seria assassinado após uma discussão em um
bar. Os outros dois foram exercer atividades de chapas nos acostamentos –
depois de alguns meses nunca mais foram vistos.
Sozinho em casa aprendi a lidar
com a mentira, na tentativa de acordar todos os dias e dizer para minha mãe que
a vida é perigosa, mas não viver é o pior dos perigos – por mais que com as
minhas mentiras, eu fizesse parte deste ensejo.
Anos mais tarde fui ser
alfabetizado, com isso poderia escrever e ler as cartas nunca escritas pelos
meus irmãos. Pagava para alguém sempre colocar a correspondência no portão, o
sorriso imensurável de D. Lucia ao receber a carta era o que sobrava da nossa
gênese. Acabei de maneira inóspita exibindo uma felicidade corada para a
família que minha mãe realmente achava ter. Apegada a imagem de uma santinha
ela rezava toda a noite pelo retorno de seus filhos. Nestas horas eu sentia uma
necessidade física de pegar uma faca e cravar na vida.
Nunca esqueço o dia em que vi
minha mãe em um caixão sem um véu cobrindo seu rosto. Morreu com um semblante
de felicidade, não parecendo que padeceu a vida toda das amarguras sofridas
cotidianamente. O único que sobrou velava ao lado de outros poucos moradores
antigos de Santa Helena a gratidão e a promessa de que a vida precisa ser
vivida – independente de como seja.
Hoje sinto ao ver meus filhos,
que a miséria da infância contornada pela toalha rala da mesa e todas aquelas
latas de produtos que nunca sentimos o gosto foi a época mais feliz da minha
vida, quero dizer, de nossas vidas. Herdei de minha mãe este sentimento.
1 comentários:
Que texto simples e bonito!
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