Toco a campainha. Gesto ridículo. Costume. Entrar na casa da avó sempre foi um ritual.
Tocar, esperar que seus passos lentos equilibrassem o corpo magro e velho em
direção à porta, escutar os quatro ou cinco cliques das chaves e cadeados
feitos para impedir algum bandido de forçar a entrada para roubar móveis
antigos e bibelôs saudosistas. Bolo de cenoura ou de milho, café passado
na hora, manteiga de verdade, pães fresquinhos.
Coloco no chão as caixas de
papelão que trouxe desmontadas e começo a testar as chaves nas trancas, bem
devagar. Tão devagar que desperto os olhares do homem no fim do corredor de
portas iguais. Ele entra indeciso no elevador, imaginando se sou a nova
inquilina ou uma ladra bem vestida.
Estou dentro. O corpo retesado
procurando fantasmas. Das minhas narinas sai um vento quente e rápido que
conheço de sobra. Desde o meu divórcio tumultuado que é assim. Passei meses
hiperventilando por qualquer besteira que me causasse ansiedade. E tudo me
causava ansiedade. Até que a avó me viu em plena crise. Abriu a gaveta do móvel
da cozinha e tirou de lá um saquinho marrom de papel, desses de
padaria. Põe na boca, depois inspira e solta o ar dentro do saco, ela me
disse. Recusei a oferta. Anda, ela insistiu, faz o que eu estou dizendo. Fiz.
Parei de ficar tonta. E melhorei ainda mais um ano depois, após começar a
terapia. Mas o artifício dos saquinhos carreguei comigo. Dentro da bolsa.
Até hoje, em qualquer lugar, quando sinto que a respiração começa a
descompassar, é só me afastar para um canto e soprar.
Os pelos do gato ainda estão
nas almofadas. Talvez eu deva levar todas elas para casa, agora que Oscar Wilde
está morando comigo. Ele vai gostar. Gato estranho. Desde que saiu daqui,
parou de miar. O veterinário me diz para esperar, porque os gatos são avessos
às perdas. Como as pessoas. Mas eu acho que ele não mia de pirraça. Não gostou
de se mudar.
Quantos livros. Vou encaixotar
e mandar tudo para uma biblioteca. Nada disso me interessa. Coleções
encadernadas de receitas, atlas, dicionários. Romances antigos de M.
Delly que pertencem à minha mãe, constato pela assinatura nas folhas de rosto. Biblioteca das Moças é o nome da coleção. Um mundo condicionante
de felicidade para jovens bem comportadas.
Interessante. Nas prateleiras mais altas, Byron, Lorca, Flaubert, Balzac. Bela safra. Edições
originais misturadas a livros traduzidos. São da avó, com certeza. Meu avô só lia jornais e novelas policiais. É uma estante ambígua.
Definitivamente, ambígua.
Vou montar mais uma caixa.
Ainda faltam os livros da última prateleira. Deve ter uns vinte lá em
cima. O que não tem é escada. Levei para casa junto com o gato. Tudo
bem. O cabo do rodo resolve. Só tenho que cutucar. E aí vem o primeiro. A
Gaia Ciência. Nietzsche...? A avó lia Nietzsche? Talvez tenha sido
presente de alguém. Uma folheada e vejo as expressões "Deus está
morto" circuladas a lápis. São três. No rodapé de uma das
páginas, escrita com a letra miúda e desenhada da avó, a
anotação: "declarar a morte é reconhecer a existência?",
seguida de outras duas que não consigo ler. Em outra página, há uma frase
inteira marcada: "Há qualquer coisa de estupidificante e
monstruoso na educação das mulheres da alta sociedade, talvez nada mais haja
tão paradoxal. Todos estão de acordo em educá-las numa ignorância extrema das
coisas do amor...".
Além dos comentários em Nietzsche, há expressões grifadas e questionamentos anotados em Sartre,
Beauvoir, Camus. Desconcertantes. Como a mulher que os escreveu.
Finalmente, o último livro da
prateleira vem para as minhas mãos. A capa amarrada por uma fita estreita chama a atenção. Cartas a um jovem poeta. Rilke
subjugado, sequestrado, preso em seu próprio livro é um pensamento idiota. Mas
é tudo o que me vem à cabeça. Desfaço o laço empoeirado e quatro envelopes
amarelados caem no meu colo. Eu me pergunto se devo ler; se quero ler. Mas
meu constrangimento não resiste ao argumento conveniente de que as fatalidades
não devem ser desprezadas.
No primeiro deles, uma carta que me parece em escrita lusitana. José de Arimatéia Sobrinho é o remetente. O
texto é curto. A despedida magoada e piegas de um amante ressentido. "Não te importunarei mais. A nossa história morrerá
comigo. Eu só estou a cismar como há-de ser possível que consigas viver ao
lado desse gajo que teu pai te escolheu para marido, porque eu sei que não és
rapariga de aceitar cabrestos. Mas como tu mesma o disseste, isso não é da minha conta. Envio-te os
retratos que pediste, e que tanta apreensão te causam."
Quem é esse homem? Que fotos
são essas? A data na carta não deixa dúvida: a avó ainda era bem jovem quando a
recebeu: Rio de Janeiro, 20 de Setembro de 1950. Foi
escrita aqui mesmo e não vejo carimbo dos correios, o que me leva a crer
que tenha sido entregue por um mensageiro ou por um amigo comum, cúmplice de
histórias obscuras.
No segundo envelope, a
data da carta é anterior à primeira: Rio de Janeiro, 4 de
junho de 1950. Talvez revele um pouco mais. Mas não. O tal
José de Arimatéia pede desculpas por não ser um homem livre e declara-se
apaixonado. Mais adiante, escreve um parágrafo de desprezo por Alberto Vargas, a
quem se refere como "o marido de conveniência”.
Não, José de Arimatéia. Alberto
Vargas não foi um marido de conveniência. Foi o meu avô amado. Que me dava
escondido as balas e os chocolates que mamãe proibia. Que me ensinou a andar a
cavalo, a jogar cartas, a gostar de viajar, a caminhar pela praia às seis
da manhã. Que foi o único pai que eu tive, depois que o meu morreu tão cedo.
Você, sim, é um oportunista, José de Arimatéia. E eu não gosto de você. Aliás,
eu detesto você.
O terceiro envelope não está sobrescritado. Dentro dele, um recorte de jornal, com data de 23 de setembro de
1950, mostrando o desfecho daquela história incompleta: "Fogo em
Laranjeiras mata empresário português". Na matéria, a dúvida da
polícia entre acidente e incêndio criminoso, seguida de uma declaração da
mulher do morto e de uma breve menção aos três filhos do
casal.
No último envelope, também não endereçado, quatro fotografias em preto e branco. E é você, avó, em
cada uma delas.
Você, exibindo os seios para o homem atrás da
câmera. Você, de braços levantados, de pernas abertas, equilibrando o
corpo despido sobre os saltos altos. Você e uma nudez descarada sobre
a cama desfeita de um quarto qualquer. Você feliz. De uma felicidade que dá
estocadas nos meus olhos.
Você sabia que seria eu.
Quem mais? Sabia que eu encontraria o seu segredo, e que as minhas narinas iriam respirar rapidamente em
descompasso, e que eu precisaria usar de novo os saquinhos de papel marrons,
e que eu vomitaria no banheiro o meu pudor oportunista. Porque
somente eu viria aqui. Para levar o gato. Para esvaziar o apartamento. Para
folhear seus livros. Para invadir a sua morte. Você sabia. E preparou a
armadilha da fita amarrada. Só não me preparou para você.
Tenho que levar as almofadas
para Oscar Wilde. Ele sente falta delas. Colocar em caixas separadas as roupas de cama, a louça, os bibelôs.
Avisar à transportadora que pode vir buscar os móveis da sala, da cozinha, dos
quartos. Levar comigo os quadros menores; a coleção de M. Delly que vou devolver à mamãe; a caixa com os existencialistas, que acabo
de doar a mim mesma para poder ler com atenção cada anotação da avó.
Preciso de mais tempo para
me decidir se vou rasgar estas fotos. Ou para me convencer de que isso já não faz
diferença. Rasgada ou intacta no envelope amarelado, não importa, a avó dos bolos e da manteiga de verdade não é mais de
verdade. Mas talvez a mulher nua das fotos seja. A mulher que esperou a morte
para se apresentar honestamente a mim.
12 comentários:
Narrativa fascinante. Esta revelacao, pausada, maravilhosa... Adorei, mais uma vez, sua Prosa, querida Cinthia. Parabens!
Obrigada, meu amigo!
Obrigada Cinthia, adorei o texto!
Desta vez não posso deixar de dizer que gostei imenso. Um texto que me deu muito prazer ler!
Sensacional, Cinthia! Lembrei quando encontrei o diário da minha avó, não foi tão intenso como sua história mas foi emocionante também! Sou sua fã! Amei!
E você, mais uma vez, cavando e desnudando a alma humana. Não sei quem ficou mais exposto em seu texto: a avó, a neta, ou o leitor?
Parabéns pelo texto e pela capacidade de ler pessoas!
Quem se revela completamente aos outros?
Absolutamente ninguém.
Amigos, muito obrigada pela leitura!
Cinthia, que banho você nos deu!! Que show! Quantos de nós nos revelamos realmente? Sensacional. Parabéns!
(Repetido)
Boa narrativa. Se é ficção ou relato, é indiferente.
Lindo texto. Deliciosamente concupiscente. Parabéns.
ótimo texto! gostei muito!!! um beijo, Cinthia
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