Cecília Maria De Luca
Hoje acordei cansada, ressaquiada... De que mesmo? Tristeza? Melancolia? Humilhação? Vergonha? Tudo isso misturado, deve ser... E penso e penso e penso. E quando penso, só penso besteira. Por exemplo, penso que vivemos no país do “faz de conta”. Faz de conta que o Brasil é um país maravilhoso, que o nosso futebol ainda é o melhor do mundo e que aquele patriotismo demonstrado nas partidas é sempre, constantemente, manifestado em todas as áreas. Faz de conta que a Copa das Copas não foi só “pra inglês ver”, que não há obras inacabadas, que não houve superfaturamento, que a sujeira não foi empurrada pra debaixo do tapete. Faz de conta que serão úteis aqueles estádios monumentais em cidades longínquas – outras nem tanto - que, imagine, não precisam de escolas e hospitais, pois já os têm eficientes e bem aparelhados. Faz de conta que nosso governo não tentou se apropriar dessa euforia – diga-se de passagem, confinada aos estádios e aos lugares em que havia show – para se autopromover. Faz de conta que nossos avanços são enormes e que seriam possíveis, ainda que um governo lá atrás, apesar das muitas decepções, não tivesse deixado como herança maldita as contas em ordem. Faz de conta que o governo seguinte não fez misérias com aquela ordem financeira e não deixou para sua sucessora vários desastres a serem administrados. Faz de conta que a nossa inflação não ultrapassou o teto permitido e que nossa economia vai a mil maravilhas. Faz de conta que nossos partidos políticos não se confundem numa promiscuidade indecente, que não lhes falta ideologia, caráter e boas intenções. Faz de conta que nossa legislação – que permite essa mixórdia – não é feita para propiciar a eles, os legisladores, continuarem nessa mesma mão grande, usufruindo do poder que lhes é legado em proveito próprio. Faz de conta que eu, dona do meu voto, terei dificuldades em escolher entre candidatos tão honestos e honrados. Que os que estão agora no poder são sérios e formidáveis como são formidáveis e sérios os que lhe fazem oposição. Aliás, faz de conta que há oposição. Faz de conta que não há violência nas ruas porque há policiamento ostensivo não só durante a Copa. Faz de conta que não estamos perdendo a guerra para o tráfico e nossas crianças e adolescentes para a droga e prostituição. Faz de conta que nosso Poder Judiciário é ágil porque nossas leis assim o permitem, evitando que advogados mal intencionados as usem em favor dos criminosos. Faz de conta que nem sabemos o que é a tal impunidade. Que o nosso sistema presidiário é satisfatório e o de saúde excelente, inexistente qualquer burocracia. Faz de conta que obras gigantescas, como a transposição do Rio São Francisco, para citar apenas uma delas, estão indo a todo vapor e não estão se desmanchando a céu aberto. Faz de conta que as montanhas que cercam minha Belo Horizonte não estão com feridas expostas, sangrando, e que nossos minérios não estão sendo surrupiados desde sempre. Que nossas florestas, matas e bosques não estão sendo devastados a torto e a direito. Faz de conta que nossos rios não estão poluídos, que nosso sistema de transporte é fantástico, que não estão despejando milhares de veículos diariamente em nossas ruas que não se esticam. Faz de conta, enfim, que eu saiba escrever e que, sabendo escrever, possa dar uma de poeta e versejar o lamento que me vai cá dentro do peito nesta manhã. Manhã seguinte à vitória acachapante da Alemanha sobre a nossa esquadra. Esquadra que, a mim, mais lembrava o próprio povo brasileiro desnorteado e sem saber o que fazer e pra que lado correr. E se posso fazer de conta que sou poeta, você, leitor, pode fazer de conta que entendeu o lamento que segue e – por que não? - fazer de conta que gostou.
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Tenho ânsia de acordar, tenho ânsia de gritar, acorda!
Levanta-te, Adamastor entorpecido, do berço que herdaste. Sacode dos séculos a poeira. Descoberto, revela teu esplendor!
Tenho ânsia de me erguer, de me levantar. Tenho ânsia de ser descoberto. Soergo-me cansado. Acontece adoecer-me de ver teus pés plantados. Colosso escarnecido, ciclope derrotado.
Quem te cega são heróis sem classe - mesma Ilíada, Odisseu astuto. Fogem, no crepúsculo, para os braços de quem os espera.
Vilipendiado prossegues gigante, menos verde, menos dourado! Esvaziam seus bosques... Metem medo no homem impotente, já cansado.
Ludibriado, tenho ânsias de gritar, acorda!
Na densa floresta de leis estão a te maltratar a língua - última flor do Lácio! Murcham Vitórias-Régias nos quintais. Nas ruas, meninos impúberes morrem armados, sem educação. Infantes, o sexo a brotar sob a pele, morrem na mira do meu berro. Gigante adormecido, tua culpa é desatenção.
Ah, quem me dera ser antes! Ter a força do trovão a bradar no cenário breu. Sobrepor luz na mentira pintada às margens do Ipiranga. Ah, o antes... Antes, deram-nos o direito de escolher o que já estava escolhido.
Os que bradaram então, agora fazem o mesmo e, do povo, truão. Sem pudor, estão se lixando para nossa opinião. E o que faz o povo distraído? Dá-lhes o poder no voto. Assim tem sido tudo, tudo tão sem sentido.
Tenho ânsia de gritar, espoliada pátria amada. Meu brado arderá, na garganta, abrasivo. Compadeço-me da crença dessa gente que sonha. No grito ansiado o murmúrio, que gigante és tu? Repito desalento: “que vergonha, que vergonha... “
Tenho ânsia de gritar, acorda!
Povo brasileiro, solta teu brado, desata o nó que te aperta o grito varonil!
Eu tenho ânsia, tenho ânsias de gritar... “Brasil!”
21 comentários:
Melhor texto que li sobre a "Copa das Copas"... Deveria ser publicado em todos os jornais e revistas do país. Rico no conteúdo e encantador na poesia. Perfeito. Parabéns, minha querida amiga Cecília. Um beijo e continue pensando, pensando e pensando... Pois, quanto mais você pensa, mais você nos enriquece. Patrícia Gontijo de Andrade
Politicamente correto.
Poeticamente fabuloso!
Parabéns!
cecilia, seu texto é ilustração ímpar, iluminura na página do meu dia. parabéns!!
Obrigada, Patricia, Lauer pela leitura e comentários. Fico aqui emocionada. Bill, a você, agradeço duas vezes.
Para além do faz de conta, fica um lamento profundo e cheio de poesia. Parabéns, Cecília !
Renê Canedo
Tristeza ao lembrar que, outrora, fazer de conta era ouvir uma história da carochinha... Tristeza maior é ver que nosso país se transformou num enorme faz de conta tão bem descrito por você... Parabéns...
Fernando De Luca
Um belo convite-confronto com as nossas condescendências. No país do faz-de-conta estamos nos tornando, também, convenientes ficções. Do outro lado, a inconveniente realidade grita, fica rouca, esmurra a porta sem maçanetas, até que desiste, em final catatônico. Parabéns, Cecilia!
Lembrar que há 3 meses ouvi um discurso de que iríamos assistir as Copas das Copas!
Que assistiríamos a redenção para o comércio, hotelaria e empresários ligados ao turismo. E nada disso aconteceu,
Agora, é aguardar os discursos da Olimpíadas.....Novos falsos sonhos e esperanças.
Parabéns Cecilia. Na sua tentativa de tirar o brasileiro de sua longa e permanente letargia.
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Obrigada, Cinthia. Uma avaliação positiva sua me deixa sempre imensamente feliz.
Querida Ciça, a cada novo texto você se supera. Parabéns por se rebelar ao "faz de conta e gritar bem alto "Acorda Brasil". Um grande beijo. Inês
Parabéns Cecilia Maria!!! Espetacular esse texto... e que vontade também de gritar "Brasil" meu "Brasil" varonil....
Uma analise precisa, num belissimo texto. Isso mesmo: Acorda, Brasil! Parabens, Cecilia. Adorei.
Obrigada, Inês e Edweine, pela leitura e comentários.
Espetacular!!!
E falo de verdade, não é faz de conta.
Em linguagem de faz de conta foram enumerados todos ou quase todos os problemas do "Impávido Colosso"...
Parabéns!!!
Um grande abraço
Ana Karina De Luca
Obrigada, Karina, pela leitura e comentário. Um grande abraço para você também!
Belo texto, bravo grito, de quem como digo sempre faz com a alma. Obrigada por esse lamento de todos nós..
Cecília, não faz de conta que esse seu lamento, não seja o mesmo de todos nós. Que o grito que hoje soltas pela garganta, não é o mesmo que o nosso, que tem a fé e a esperança de acordar o Gigante que há muito dorme cansado, desgastado, sofrido,,,Acordar forte e feroz atropelando e expulsando a todos os seus destruidores.
Obrigada, Maria das Graças Gonçalves, pela leitura e comentário, Obrigada, também, Fernando De Luca. Bom saber que meu texto agradou.
Uauuuu... como eu não havia lido esse texto sensacional??!! Parabéns, Ciça, adoreiii... e não é no faz de conta, é no pra valer ;)
Eu também tenho ânsia de gritar... "Brasil!"
Bejios
Obrigada, Van! Senti mesmo sua falta.
Cecília, não é preciso fazer de conta que você contou as coisas muito bem, que você retratou de forma bem interessante o que sente uma boa parte dos brasileiros. Marcelo.
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