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segunda-feira, 28 de julho de 2014

Filho do desassossego


No último 25 de julho comemorou-se o Dia do Escritor, esse filho do desassossego. Hoje, o escritor que sou (releve!) está sem o que escrever. Numa frase: o escritor está cansado de se derramar perdulário. E o raro leitor, presumo, cansado de acolher os meus excessos. Estando sem o que escrever,  bem que eu podia ficar em silêncio, bem que eu podia dar de presente o silêncio da palavra, não fosse a sina que abracei de espalhar palavras e frases, tendo ou não palavras e frases para espalhar. O escritor escritura o que vier, escritura com o que tem à mão, escritura mesmo sem ter nada à mão. Há dias em que o escritor pousa o olhar na folha em branco e nada pousa na sua imaginação. Ainda assim o escritor faz pousar na página palavras colhidas em vôo rasteiro. O escritor, escravo, cumpre a sina de lavrar com a palavra o chão da vida. Escritor pra valer está sempre em estado de ebulição da escrivatura. Um texto é como um ovo que é preciso botar, é como uma pedra que é preciso expelir, é como um grito que é preciso libertar, é como um silêncio que é preciso pronunciar. Escrever requer começo, mas é sem fim. O escritor é um pobre vassalo da tirania das palavras – ou do silêncio. O escritor é um operário da palavra. O escritor, feito um Quixote, arma-se da palavra para salvar do esquecimento acontecimentos baldios. 
Penso que escrever é preencher um vão entre o eu e o mundo, entre o dentro e o fora, entre o que foi e o que virá. Como o vão nunca se preenche, a escrita nunca cessa. É por isso que venho escrevendo sem margens e enchendo de vãs palavras páginas sem fim. No processo de preencher vãos, descobrem-se mais e mais desvãos. O escrevente desassossegado que tenho sido vive cobrindo de palavras os desvãos em que a vida é pródiga. É um desejo vão. Os vãos e desvãos seguirão se multiplicando. As mesmas palavras que cobrem vãos, descobrem outros. Escrever é sem fim. Não há palavra que dê conta de tanto vão. A sina de preencher vãos equivale a cair numa espécie de moto-contínuo. Fecha-se um vão no exato momento em que se é capturado por outro vão. Assim sem fim, até o fim. Porque escrever, mais que cobrir vãos, é escavar mais vãos. Porque escrever, em vez de trazer respostas, pode trazer mais perguntas. Uma resposta pode ser o ponto de partida para outras perguntas. Isso de ficar observando “a vida se vivendo em nós e ao redor de nós” é sem fim – e ultrapassa qualquer entendimento. O mais que fazemos é administrar os vãos de perplexidade que a vida abre de diante de nós. O certo é que há muito mais desvãos entre um vão e outro do que supõe a nossa vã percepção.

O cineasta Joaquim Pedro de Andrade, ao ser perguntado por que fazia cinema, deu uma resposta genial. Adriana Calcanhotto ouviu na resposta uma música – que pode ser lida/ouvida aqui. Usando a moldura do que respondeu o cineasta, eis minha tentativa de resposta à pergunta “Por que escrevo?”: 
Para ter a garantia do anonimato.
Para não ser lido depois de dispor no papel os brilhos do chão.
Para brincar com as 26 patas do bicho alfabeto.
Para correr o risco de ser flagrado em delito de intertextualidade.
Para que conhecidos e desconhecidos se deliciem”.
Para que os saltimbancos e amadores ganhem invisibilidade, sobretudo eu mesmo.
Porque a vida precisa ser recolhida pelas palavras.
Para reescrever o sempre escrito, a vida e o viver, o amor e a dor.
Porque li machado, rosa, clarice et alii.
Para aliciar os incautos e distraídos quando divulgo meu desfile de ninharias.
Para ter meus direitos autorais pagos com elogios baldios.

E assim, de vão em vão, o escritor segue o seu destino. O destino de todo escritor? O desassossego. O lugar do escritor? Onde quer que possa escutar os ruídos da vida. O papel do escritor? A4, como bem disse o grande escritor Evandro Affonso Ferreira, dono de uma dicção literária personalíssima. Eu? Um quase escritor, autor de Quase Nada, um livro de crônicas – ou quase!

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