No último 25 de julho comemorou-se o Dia do Escritor, esse filho
do desassossego. Hoje, o escritor que sou (releve!) está sem o que escrever.
Numa frase: o escritor está cansado de se derramar perdulário. E o raro leitor,
presumo, cansado de acolher os meus excessos. Estando sem o que escrever, bem que eu podia ficar em silêncio, bem que eu
podia dar de presente o silêncio da palavra, não fosse a sina que abracei de
espalhar palavras e frases, tendo ou não palavras e frases para espalhar. O
escritor escritura o que vier, escritura com o que tem à mão, escritura mesmo
sem ter nada à mão. Há dias em que o escritor pousa o olhar na folha em branco
e nada pousa na sua imaginação. Ainda assim o escritor faz pousar na página
palavras colhidas em vôo rasteiro. O escritor, escravo, cumpre a sina de lavrar
com a palavra o chão da vida. Escritor pra valer está sempre em estado de
ebulição da escrivatura. Um texto é como um ovo que é preciso botar, é como uma
pedra que é preciso expelir, é como um grito que é preciso libertar, é como um
silêncio que é preciso pronunciar. Escrever requer começo, mas é sem fim. O
escritor é um pobre vassalo da tirania das palavras – ou do silêncio. O
escritor é um operário da palavra. O escritor, feito um Quixote, arma-se da
palavra para salvar do esquecimento acontecimentos baldios.
Penso que escrever
é preencher um vão entre o eu e o mundo, entre o dentro e o fora, entre o que
foi e o que virá. Como o vão nunca se preenche, a escrita nunca cessa. É por
isso que venho escrevendo sem margens e enchendo de vãs palavras páginas sem
fim. No processo de preencher vãos, descobrem-se mais e mais desvãos. O
escrevente desassossegado que tenho sido vive cobrindo de palavras os desvãos
em que a vida é pródiga. É um desejo vão. Os vãos e desvãos seguirão se
multiplicando. As mesmas palavras que cobrem vãos, descobrem outros. Escrever é
sem fim. Não há palavra que dê conta de tanto vão. A sina de preencher vãos
equivale a cair numa espécie de moto-contínuo. Fecha-se um vão no exato momento
em que se é capturado por outro vão. Assim sem fim, até o fim. Porque escrever,
mais que cobrir vãos, é escavar mais vãos. Porque escrever, em vez de trazer
respostas, pode trazer mais perguntas. Uma resposta pode ser o ponto de partida
para outras perguntas. Isso de ficar observando “a vida se vivendo em nós e ao
redor de nós” é sem fim – e ultrapassa qualquer entendimento. O mais que
fazemos é administrar os vãos de perplexidade que a vida abre de diante de nós.
O certo é que há muito mais desvãos entre um vão e outro do que supõe a nossa
vã percepção.
O cineasta Joaquim Pedro de Andrade, ao ser perguntado por que fazia cinema, deu uma resposta genial. Adriana Calcanhotto ouviu na resposta uma música – que pode ser lida/ouvida aqui. Usando a moldura do que respondeu o cineasta, eis minha tentativa de resposta à pergunta “Por que escrevo?”:
O cineasta Joaquim Pedro de Andrade, ao ser perguntado por que fazia cinema, deu uma resposta genial. Adriana Calcanhotto ouviu na resposta uma música – que pode ser lida/ouvida aqui. Usando a moldura do que respondeu o cineasta, eis minha tentativa de resposta à pergunta “Por que escrevo?”:
Para ter a garantia do anonimato.
Para não ser lido depois de dispor no papel os brilhos do
chão.
Para brincar com as 26 patas do bicho alfabeto.
Para correr o risco de ser flagrado em delito de intertextualidade.
“Para que conhecidos e desconhecidos se deliciem”.
Para que os saltimbancos e amadores ganhem invisibilidade, sobretudo eu mesmo.
Porque a vida precisa ser recolhida pelas palavras.
Para reescrever o sempre escrito, a vida e o viver, o amor e a dor.
Porque li machado, rosa, clarice et alii.
Para aliciar os incautos e distraídos quando divulgo meu desfile de ninharias.
Para ter meus direitos autorais pagos com elogios baldios.
Para brincar com as 26 patas do bicho alfabeto.
Para correr o risco de ser flagrado em delito de intertextualidade.
“Para que conhecidos e desconhecidos se deliciem”.
Para que os saltimbancos e amadores ganhem invisibilidade, sobretudo eu mesmo.
Porque a vida precisa ser recolhida pelas palavras.
Para reescrever o sempre escrito, a vida e o viver, o amor e a dor.
Porque li machado, rosa, clarice et alii.
Para aliciar os incautos e distraídos quando divulgo meu desfile de ninharias.
Para ter meus direitos autorais pagos com elogios baldios.
E assim, de vão em vão, o escritor segue o seu destino. O destino
de todo escritor? O desassossego. O lugar do escritor? Onde quer que possa
escutar os ruídos da vida. O papel do escritor? A4, como bem disse o grande
escritor Evandro Affonso Ferreira, dono de uma dicção literária personalíssima.
Eu? Um quase escritor, autor de Quase Nada,
um livro de crônicas – ou quase!
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