Joaquim Bispo
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O futebol tem-se revelado, para mim,
muito importante, culturalmente, por mais estranho que pareça.
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Há dias, à hora das notícias, liguei o
televisor para a RTP-1, com a preocupação de saber que amplitude vão ter os
novos cortes que o governo vai aplicar às pensões dos reformados. Em vão:
estava a transmitir imagens de uma partida de futebol.
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Tinha havido uma final importante, a da
Taça de Portugal, de que eu vira a 2ª parte. Não ligo muito ao futebol,
devido aos aspetos arruaceiros que ele transmite demasiadas vezes. Gosto de
ver as partidas relevantes, desde que o desempenho seja leal, pujante e criativo,
mas dispenso imagens requentadas…
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Mudei para a SIC, com vontade de me esclarecer
se eram credíveis as sondagens que davam vantagem, nas eleições de hoje, aos
partidos responsáveis pelas governações que nos trouxeram ao pântano e pelas que
nos afogaram nele. Em vão: estava a falar o treinador do Benfica, a equipa
vitoriosa.
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O futebol é um espetáculo visual, cujos
bons lances são, para alguns, objetos estéticos. Para mim, é como o sexo: é
para praticar ou ver, mas não para ouvir declarações dos intervenientes.
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Mudei para a TVI, resignado a ouvir de algum
governante mais despudorado que o país está prestes a atingir o alto objetivo
para sair da crise que é poder voltar a pedir dinheiro emprestado aos “mercados”. Em
vão: estava a transmitir a receção/homenagem que a Câmara de Lisboa dispensava
à equipa vencedora e seus dirigentes.
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Espero que não estivesse lá nenhum
daqueles intervenientes que às vezes se envolvem em pancadaria. O futebol é
uma força relevante em que parte da sociedade se revê, cujos exemplos
interioriza e copia e portanto modeladora de comportamentos e atitudes
perante o “outro”. As agressões e os tumultos são altamente antipedagógicos e
sendo desculpados e, por isso, premiados, consolidam a mensagem de que é aceitável
agredir para evitar um golo ou para reclamar de uma decisão do árbitro.
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Mudei para a SIC-Notícias, disposto a espantar-me,
como habitualmente, com a criatividade das manipulações, dos esquemas e das subversões que os intervenientes do sistema terão
usado para desresponsabilizar, descriminalizar, libertar, e talvez indemnizar o
corrupto do dia. Em vão: tratava dum assunto de que já não me lembro, mas
logo de seguida passou para a divulgação da lista dos jogadores da equipa
portuguesa ao mundial do Brasil. A coisa demorou uns três minutos, mas depois
voltou ao Benfica.
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Não sem que eu vislumbrasse, de memória,
umas cotoveladas no rosto do adversário, um pé em riste à canela ou um bando
vociferante à volta de um árbitro. Espero não vir a ficar envergonhado com
tal representação.
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Mudei para a RTP-Informação, apreensivo
com a possibilidade de as potências em conflito já terem feito alastrar a guerra
civil a toda a Ucrânia. Em vão: estava a transmitir a festa dos adeptos do
Benfica no largo do município.
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Acho divertido, mas dramático, que os
desgraçados que ganham o salário mínimo ou menos vão a todo o lado vitoriar
os seus milionários ídolos, mas pior, vão aos estádios pagar bilhetes de preço
proibitivo, que alimentam uma engrenagem financeira que tem aspetos obscenos
de desigualdade social.
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Mudei para a TVI-24, tentando adivinhar
quantos mortos provocara nesse dia a democracia implantada pelos americanos
no Iraque. Em vão: estava a decorrer uma mesa-redonda em que um painel de
comentadores perorava sobre as escolhas do selecionador nacional.
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É inacreditável a quantidade de horas que
variados painéis de comentadores conseguem estar a falar de futebol, às vezes
de um jogo apenas. Com certeza que têm espetadores, mas tenho dificuldade em
imaginar milhares de pessoas em suas casas a prestar atenção a uns tipos que apenas falam de um espetáculo que é eminentemente
visual.
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Já sem grandes esperanças de escapar ao
futebol, mudei para a RTP-2. Mas não: foi assim que tive oportunidade de
assistir a um programa sobre endocrinologia e ambiente e os efeitos nefastos
que um ambiente cada vez mais poluído tem tido para a saúde. Muito
interessante e pedagógico. Se não fosse o futebol, tê-lo-ia perdido. Só lhe posso
estar agradecido!
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4 comentários:
Olá Joaquim, tudo bem? Excelente texto e uma visão muito acutilante desta triste realidade que tu tão bem retrataste. Partilho integralmente as tuas ideias. Que bom ser-se ESCRITOR para poder transpor para a escrita aquilo que sentimos! Parabéns e um grande abraço do amigo Portugal da Silveira
Abraço, Portugal!
Não passo de um escrevinhador diletante, mas deleito-me com esta possibilidade de, através das potencialidades da ficção, tornar "audível" a minha voz. Mais contente fico quando percebo que esta voz não é só minha.
Muito bom, Joaquim.
Abomino futebol e talvez me sentisse exatamente como neste texto se eu assistisse TV.
Estou acompanhado a Copa do Mundo por duas razões básicas:
1 - para torcer contra a seleção brasileira, e
2 - para torcer contra a seleção espanhola.
Abraços.
A propósito do futebol que eu tenho de ver em função do meu serviço, só agora li o teu texto. Só tu mesmo Joaquim Bispo para escreveres este texto tão interessante. Afinal toda a gente se esquece da RTP2, que continua a ser um canal de referência, mas que poucos o veem. Bem haja muito grande.
Cidalina
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