"Sua prata tornou-se escória."(Isaías, 1: 22)
Foi de repente.
Quando vi, minha vizinha já tinha abaixado minhas calças.
Ela era cega e foi até o fim, chamando-me com o nome de seu marido
enquanto brincava comigo.
Eu era apenas silêncio.
Eu e Ângelo somos amigos de infância.
Ele casou com a ceguinha do bairro por pressão da família. Fez barriga.
Tomávamos cerveja todo final de tarde na casa dele. Mas depois do que
aconteceu, me isolei em casa. Não atendia ao telefone nem a porta; saía apenas
para trabalhar.
Estava assistindo a um programa fajuto na tevê, quando minha vizinha
bateu à porta. Queria fingir que não estava, mas achei melhor conversar com
ela. Resolver a questão. Mas não sabia o que dizer.
Abri a porta sem coragem de olhar para aqueles olhos opacos.
Ângelo quer saber por que você sumiu. Tá doente?
(Porque estou morrendo de remorso. E você nem desconfia o porquê.)
É, não estou muito bem.
Ele quer falar com você.
(Nada fica encoberto. Vocês já descobriram?)
Eu não sei se eu posso.
Não seja bobo.
(Mas como é que eu vou olhar pra ele? Todos os dias, fico remoendo e
pensando no que fiz com você.)
Eu tenho coisas pra fazer.
Não tem, não. Eu sei o que está acontecendo.
(Você descobriu tudo. Vai me jogar na cara o que cometi. Eu não presto.
Eu sou escória. Aquilo foi imperdoável. Eu devia ter tentado evitar.)
Não se preocupe comigo, vizinha.
Ângelo não sabe o que fizemos. Eu não contei pra ele.
O que você disse?
Eu sabia desde o início que eu não estava com meu marido.
Você sabia que era eu?
Claro.
Mas você me chamava pelo nome dele.
Foi pra ficar mais interessante.
E como sabia que era eu e não o Ângelo?
Cada macho tem um cheiro diferente.
Como?
Ângelo não tem cheiro nenhum.
Este conto integra o livro Sísifo Desatento, que será publicado em maio
deste ano, pela editora Terracota.
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