Joaquim Bispo
– Todo o ano? Qual Natal, pai, o dos
nascimentos ou o das prendas?
– O nosso, que não
fazemos outra coisa senão presépios, anjinhos e outras figurinhas alusivas, em
barro.
– Estas meias-pinhas não
têm muito que ver com o Natal…
– Meias, não, Tiago. As
metades de baixo que estás a moldar… Pressiona bem esse barro no molde, para não
ficar com falhas! Dizia eu, as tuas metades mais as de cima, ali da tua mãe,
unidas e retocadas por mim, fazem pinhas inteirinhas e, depois de irem ao
forno, ficam bem bonitas.
– Eh!
– É uma peça barata para
oferecer como gentileza, nesta época. Não é um presente de marido para mulher
ou de avô para neto, mas é uma boa ideia para oferecer entre colegas de
trabalho, ou entre amigas. Como sabes, há até empresas que as compram às
dezenas para acompanhar outras prendas aos empregados.
– Sim, eu sei, não é a
primeira vez que venho ajudar; mas o que é que têm que ver com o Natal?
– O Natal reteve muitas das
práticas das festas pagãs dos antigos, para festejar o solstício do inverno.
Mantém uma grande ligação ao campo, à floresta. E pinha lembra floresta. Não é,
Teresa?
– Com certeza. E fogo.
Sequinha, é a melhor acendalha que há. Nas aldeias, ainda hoje se acendem
grandes madeiros, no adro da igreja. Já viste, lá na Amieira, o povo todo à
volta da fogueira na noite de Natal! Pinha, fogueira e Natal andam associados.
– E essas bolinhas?
– Azevinho. Algumas
pessoas também ornamentam as casas com ele, quer as ombreiras das portas, quer
as lareiras e as mesas. Estas bagas, que hão de ser pintadas de vermelho, e
estas folhas, aqui em cima da pinha, são de azevinho.
– Salvo seja, mãe!
– Olha que não estão nada
más! Zé, tens aqui mais cinco.
– Aonde é que vamos
passar o Natal, este ano?
– Então, vamos à Amieira!
O ano passado foram os tios que vieram cá…
– À Amieira?! Ganda
seca! Porque é que não vamos para o Algarve?
– O Natal é a festa da
família, Tiago. Se não estivermos reunidos nesta altura, só nos vemos nos
enterros.
– Tiago, oca bem essa
metade! Se o barro ficar muito grosso, estala na cozedura.
– Fogo! Os tios só
me oferecem livros com histórias que não interessam nem ao Menino Jesus.
– Se calhar não te fazia
mal nenhum lê-los, em vez de estares sempre agarrado à consola de jogos.
– Bela consola, esta!
Estou todo consolado! Já deito pinhas pelos olhos!
– Tiago Manuel! Não
menosprezes este trabalho. Cada uma rende pouco, mas se vendermos seiscentas
como no ano passado… Dão mais do que meia dúzia de presépios como aquele ali,
que já me leva uns cinco dias de trabalho. Ali, debaixo daquele pano húmido! A
propósito, lembras-te de a tua mãe dizer que não era muito lógico o pastor
levar uma lebre no braço?
– Sim, até apostaste com
ela um lanche na pastelaria. As apostas forretas do costume! O que é que tu dizias, mãe?
– Que fazia mais sentido
ser um cabrito ou um borrego. Se é um pastor…
– Pois! Mas o que me
parecia ver na estampa da Adoração dos pastores era uma lebre. No domingo de tarde, enquanto estavas para o cinema, eu e
a tua mãe fomos de propósito ao Museu de Arte Antiga tirar as teimas.
Realmente, ver o quadro do pintor Gregório Lopes, ali mesmo à nossa frente, é outra coisa! Fiquei convencido de que é um
cabrito. Perdi! Sempre me tinha parecido uma lebre.
– Não ganhei grande coisa
nessa aposta. Se fosse o Euromilhões! Zé, o que é que tu gostavas que eu te
desse, agora no Natal, se me tivesse saído muito dinheiro?
– Uma autocaravana.
– Assim, levas uma camisa,
oh-oh!
– Eu quero uma viola elétrica.
– Para quê? Tu não sabes
tocar!
– Como é que eu posso
aprender? A ver telediscos?
– Já tens uma acústica,
de madeira.
– E toco! Mas a música
agora tem de ter amplificação e encher o espaço.
– Era só o que nos
faltava – barulheira. Eu gosto pouco de barulho.
– Então um leitor de mp4.
Com auscultadores.
– O que é que achas,
Teresa?
– Eu não me importo. Só
tenho medo que ele fique surdo como o filho do vizinho. Andava sempre com
aquilo nos ouvidos, que não dava por ninguém. E ao teu irmão, o que é que
havemos de dar?
– Isso é que é mais
difícil! Ele já tem tudo. Também não lhe vamos dar uma moto de água, para andar
na barragem, que é só no que ele fala agora!
– Tem de ser uma coisa
boa!
– Mesmo que ele já tenha,
mãe?
– Uma camisola faz sempre
falta. Mas das boas, que lá o frio até corta. Fancaria é que não. Como uns
brincos de pechisbeque que o teu pai me deu uma vez.
– Gostaste deles,
confessa!
– Eh! Estávamos casados
só há um ano. Não ia dizer que não gostava ou que não queria. Estão para ali.
Passa-me essa espátula, Tiago.
– Já estou cansado…
– E se fizéssemos uma
pausa para lanchar, Zé?
– Sabem o que me apetecia
agora, com esta conversa? Uma filhó.
– Ainda bem que falas
nisso. Este ano, estamos a atrasar-nos. A ver se amanhã vou comprar
farinha. No sábado que vem, amasso-as, e à noite fritamo-las.
– Eu viro-as.
– E eu espalho o açúcar
por cima, posso?
– Vai parecer o presépio.
– Falta o burro e a vaca.
Não querem convidar os vizinhos do rés-do-chão?
– Tiago Manuel!
– Tiago Manuel…
3 comentários:
Belo texto, parabéns Joaquim Bispo!
Uma deliciosa cena em família. Preparativos para o Natal, tão parecidos aí e aqui. Lembrei da minha família, a gente arrumando a árvore e fazendo comentários parecidos: "Meia de novo este ano, não! Tomara que a tia me dê pelo menos um lenço", era a risadaria dos primos. De uma ponta a outra este texto me trouxe alegria, até quando passeou por instantes na nostalgia. Imaginei a cena, passo a passo. E o final "a la Joaquim"! Como não podia deixar de ser, uma galhofa! rsrs
Obrigado, cecilia e Cinthia!
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