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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Miúdo chão: belezas


Não me canso de recolher as belezas baldias que pousam “no chão breve do cotidiano” (Alexandra Rodrigues). Não me canso de espalhar o que transborda da minha arca de nonadas. Hoje, retiro da minha arca três dessas belezas.

Penso que a delicadeza devia ser pauta obrigatória no convívio humano. Quando ela passa a chamar a atenção, algo vai mal, mas vai mal demais. Certa manhã, uma delicadeza passou veloz pela minha retina e quase que não a percebo. O alvo da delicadeza foi um moço que encontro na parada, dia sim, dia não. É bem possível que ele seja vigilante de algum prédio das redondezas (em se tratando de Brasília, melhor seria dizer das quadradezas). Preocupado com o meu próprio ônibus, ainda assim percebi o moço correndo (e muito) para longe da parada. Bem à frente, uns cinqüenta metros além da parada, havia um ônibus parado. Era em direção a esse ônibus que o moço corria – e levava estampado na cara o mais largo e agradecido dos sorrisos. Não teria me perdoado se tivesse deixado escapar a magia daquele gesto poético tão gratuito, tão fugaz, tão feito para a desatenção de todos nós. Eu senti em mim a felicidade do moço que, graças à delicadeza de um motorista para quem a vida não deve ser nem um pouco delicada, pôde economizar um bom tempo de espera pelo próximo ônibus. E se o moço era um trabalhador da noite, como eu presumo, a pressa de chegar em casa devia ser grande. Daria tudo pra ter embarcado no mesmo ônibus apenas para testemunhar, uma vez mais, a cara de felicidade do moço, ouvir o que conversaria com o motorista emissário do gesto poético. Desejaria ficar mais tempo próximo daquela vibração de delicadeza tão rara nesses tempos ásperos e desesperançados. Fico feliz de ter aprisionado aquele flagrante de beleza que cruzou meu campo de visão em vôo ultra-rápido. O que vi e mal descrevi vai inteiro para o estojo da memória. E na alma fica o desejo de que outros gestos poéticos, tão mágicos quanto este, cruzem o meu (nosso) caminho. Assim seja!
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Estendi minha fidelidade ao restaurante Green’s, que ia de segunda a sexta, até o almoço do sábado. No sábado gosto de almoçar um pouquinho mais cedo – pouco antes do meio-dia. Eu e um casal simpaticíssimo que me chamou a atenção desde o primeiro almoço. De cara pensei que fossem os dois, Sr. Carlos e Sra. Cecília, pais do dono do restaurante. Desconfiei disso porque todos os funcionários da casa iam falar com eles. E foi isso que perguntei à moça do caixa. Não, não são pais do dono. São clientes normais, fidelíssimos como eu, inclusive quanto ao horário. Encontro-os todo sábado, mas ainda não falei com eles. Gosto mais de observar, de entreouvir conversas, de participar calado – mas atentíssimo. O nome deles descobri graças a uma pequena delicadeza do proprietário. Na mesa que eles ocupam há uma plaquinha: “Reservado. Sr. Carlos e Sra. Cecília”. Achei lindo. Antes de se servirem, cada qual pede um suco. Ele, abacaxi com hortelã; ela, beterraba. Calculo que eles tenham coisa de 75 anos. Dona Cecília está com uns curativos num dos joelhos. Talvez uma queda acidental. O Sr. Carlos senta-se de costas para mim. Dona Cecília vejo bem. Quando saio, eles ainda nem começaram a se servir. Dona Cecília parece meio dona do lugar: dá ordens (severa sem deixar de ser delicada), manda ligar/desligar ventilador, observa coisas fora do lugar, chama a atenção dos garçons... Melhor dizendo: chama a atenção dos filhos. É um pouco assim que ela os trata; é um pouco assim que os funcionários os tratam – como pais. Tudo muito bonito de se ver. Vendo aqueles dois tão harmoniosos, tão entregues ao apetite de viver, não importando que estejam em pleno crepúsculo e a noite talvez não tarde a chegar, sinto vontade de aplaudir a Senhora Dona Vida coberta de ouro e prata.

* * *

Há quem pense que só olho para o próprio umbigo. Se fosse verdade, responderia com estas palavras do poeta Manoel de Barros: “Não tenho forças para desencostar-me”. Eu penso que a realidade é bem outra. E não poderia ser diferente: gosto tanto de observar meus vizinhos de vida que me esqueço de mim. Não fosse o gosto de observar, eu não teria sido agraciado com a cena que passo a contar. Após o café e a leitura de toda manhã, prazeres sagrados, reservo uns minutinhos para gastar numa banca de revistas ao lado da cafeteria. Lá compro jornal às segundas e quartas, além de algumas revistas ao longo do mês. Pois foi nesses minutinhos que testemunhei uma cena linda. Uma mulher entra na banca, cumprimenta as atendentes e vai em direção da dona, a Almira, dizendo: “Dê cá um abraço que hoje eu tô precisando de calor humano!” E dá um longo abraço na dona. A mulher é funcionária de alguma loja vizinha – e funcionária da cozinha, pois estava com uma touca nada fashion na cabeça. Conversaram um pouquinho, a mulher perguntou quanto devia, reclamou de algumas revistas etc., e eu retardei o quanto pude minha permanência na banca apenas para acompanhar aquela manifestação espontânea de afeto, aquela lindeza de despojamento e simplicidade. Afetei desinteresse folheando disfarçadamente uma revista... De verdade, eu só tinha atenção para o que falavam as duas, para a beleza do ordinário que sempre irrompe sem aviso. Eu tive de sair antes que elas se despedissem, mas saí feliz de a manhã ter posto um sorriso na minha alma de forma tão gratuita e inesperada.

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