Não me canso de recolher as belezas baldias que pousam “no chão
breve do cotidiano” (Alexandra Rodrigues). Não me canso de
espalhar o que transborda da minha arca de nonadas. Hoje, retiro da
minha arca três dessas belezas.
Penso que a delicadeza devia ser pauta
obrigatória no convívio humano. Quando ela passa a chamar a
atenção, algo vai mal, mas vai mal demais. Certa manhã, uma
delicadeza passou veloz pela minha retina e quase que não a percebo.
O alvo da delicadeza foi um moço que encontro na parada, dia sim,
dia não. É bem possível que ele seja vigilante de algum prédio
das redondezas (em se tratando de Brasília, melhor seria dizer das
quadradezas).
Preocupado com o meu próprio ônibus, ainda assim percebi o moço
correndo (e muito) para longe da parada. Bem à frente, uns cinqüenta
metros além da parada, havia um ônibus parado. Era em direção a
esse ônibus que o moço corria – e levava estampado na cara o mais
largo e agradecido dos sorrisos. Não teria me perdoado se tivesse
deixado escapar a magia daquele gesto poético tão gratuito, tão
fugaz, tão feito para a desatenção de todos nós. Eu senti em mim
a felicidade do moço que, graças à delicadeza de um motorista para
quem a vida não deve ser nem um pouco delicada, pôde economizar um
bom tempo de espera pelo próximo ônibus. E se o moço era um
trabalhador da noite, como eu presumo, a pressa de chegar em casa
devia ser grande. Daria tudo pra ter embarcado no mesmo ônibus
apenas para testemunhar, uma vez mais, a cara de felicidade do moço,
ouvir o que conversaria com o motorista emissário do gesto poético.
Desejaria ficar mais tempo próximo daquela vibração de delicadeza
tão rara nesses tempos ásperos e desesperançados. Fico feliz de
ter aprisionado aquele flagrante de beleza que cruzou meu campo de
visão em vôo ultra-rápido. O que vi e mal descrevi vai inteiro
para o estojo da memória. E na alma fica o desejo de que outros
gestos poéticos, tão mágicos quanto este, cruzem o meu (nosso)
caminho. Assim seja!
* * *
Estendi minha fidelidade ao restaurante Green’s, que ia de
segunda a sexta, até o almoço do sábado. No sábado gosto de
almoçar um pouquinho mais cedo – pouco antes do meio-dia. Eu e um
casal simpaticíssimo que me chamou a atenção desde o primeiro
almoço. De cara pensei que fossem os dois, Sr. Carlos e Sra.
Cecília, pais do dono do restaurante. Desconfiei disso porque todos
os funcionários da casa iam falar com eles. E foi isso que perguntei
à moça do caixa. Não, não são pais do dono. São clientes
normais, fidelíssimos como eu, inclusive quanto ao horário.
Encontro-os todo sábado, mas ainda não falei com eles. Gosto mais
de observar, de entreouvir conversas, de participar calado – mas
atentíssimo. O nome deles descobri graças a uma pequena delicadeza
do proprietário. Na mesa que eles ocupam há uma plaquinha:
“Reservado. Sr. Carlos e Sra. Cecília”. Achei lindo. Antes de se
servirem, cada qual pede um suco. Ele, abacaxi com hortelã; ela,
beterraba. Calculo que eles tenham coisa de 75 anos. Dona Cecília
está com uns curativos num dos joelhos. Talvez uma queda acidental.
O Sr. Carlos senta-se de costas para mim. Dona Cecília vejo bem.
Quando saio, eles ainda nem começaram a se servir. Dona Cecília
parece meio dona do lugar: dá ordens (severa sem deixar de ser
delicada), manda ligar/desligar ventilador, observa coisas fora do
lugar, chama a atenção dos garçons... Melhor dizendo: chama a
atenção dos filhos. É um pouco assim que ela os trata; é um pouco
assim que os funcionários os tratam – como pais. Tudo muito bonito
de se ver. Vendo aqueles dois tão harmoniosos, tão entregues ao
apetite de viver, não importando que estejam em pleno crepúsculo e
a noite talvez não tarde a chegar, sinto vontade de aplaudir a
Senhora Dona Vida coberta de ouro e prata.
* * *
Há quem pense que só olho para o próprio umbigo. Se fosse verdade,
responderia com estas palavras do poeta Manoel de Barros: “Não
tenho forças para desencostar-me”. Eu penso que a realidade é bem
outra. E não poderia ser diferente: gosto tanto de observar meus
vizinhos de vida que me esqueço de mim. Não fosse o gosto de
observar, eu não teria sido agraciado com a cena que passo a contar.
Após o café e a leitura de toda manhã, prazeres sagrados, reservo
uns minutinhos para gastar numa banca de revistas ao lado da
cafeteria. Lá compro jornal às segundas e quartas, além de algumas
revistas ao longo do mês. Pois foi nesses minutinhos que testemunhei
uma cena linda. Uma mulher entra na banca, cumprimenta as atendentes
e vai em direção da dona, a Almira, dizendo: “Dê cá um abraço
que hoje eu tô precisando de calor humano!” E dá um longo abraço
na dona. A mulher é funcionária de alguma loja vizinha – e
funcionária da cozinha, pois estava com uma touca nada fashion
na cabeça. Conversaram um pouquinho, a mulher perguntou quanto
devia, reclamou de algumas revistas etc., e eu retardei o quanto pude
minha permanência na banca apenas para acompanhar aquela
manifestação espontânea de afeto, aquela lindeza de despojamento e
simplicidade. Afetei desinteresse folheando disfarçadamente uma
revista... De verdade, eu só tinha atenção para o que falavam as
duas, para a beleza do ordinário que sempre irrompe sem aviso. Eu
tive de sair antes que elas se despedissem, mas saí feliz de a manhã
ter posto um sorriso na minha alma de forma tão gratuita e
inesperada.
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