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quarta-feira, 15 de maio de 2013

o terceiro dia





          Cristiano tinha aquela ovelha e não tinha outra. Naquele dia a ovelha adoeceu, revirou os olhos, caiu de lado em frente ao meloal e, ali mesmo, Cristiano a considerou morta. E ali a deixou ao sol.
Cristiano semeava o meloal. Nunca o deixava por fazer, um ano após outro ano. Prometera ao pai. Vendia os melões na berma da estrada. Vivia disso, era o que diziam.
A ovelha morta ficou carcaça e encheu-se de moscas e de larvas e de odores pestilentos. Cristiano nem deu uma cavadela a enterrá-la, nem lhe jogou por cima uma pá de terra, e o que tinha sido bicho apodreceria.

****

Naquele dia, a preta tinha posto.
A preta era uma galinha. Cristiano tinha um galinheiro com um galo e umas quantas galinhas, mas poedeira e preta era só aquela.
Estaria o ovo algures pelas redondezas, que Cristiano ouvira o cacarejo da galinha anunciando.
O ovo estaria em qualquer sítio e daria um jantar e tanto, mas Cristiano não se mexeu a ir procurá-lo.
Atirou um pedaço de pau, e o Galego correu. O cachorro trouxe o pau nos dentes, e colocou-o aos pés de Cristiano que lhe deu o esperado afago e tornou a atirar.
A preta tinha posto.
Cristiano não irá procurar o ovo, que lhe custa muito ir por esse terreno abaixo, que ele nem sabe onde a preta faz ninho.
Que a galinha pusesse esse, e mais uns tantos, e um dia destes sairiam pintainhos. Cristiano havia de vê-la chocar e ficaria sabendo o que agora não sabe.
E Cristiano tornou a afagar o Galego que tinha ido buscar o pau e o colocava de novo ali ao lado.
O sol estava quase a rasar o horizonte.
Cristiano levantou-se, uma mão no chão e a outra no gargalo do poço onde estava encostado, e lá colocou na vertical o corpo escanzelado, quase só pele e osso. Ali ao lado dobravam-se, prenhes de frutos, uns pés de fava, que as senhoras tinham vindo ajudá-lo este ano a fazer o faval.
– Cristiano, a terra deste quintal é um encanto. Se tratasse dela tinha aqui de tudo.
– Além do meloal podia ter muito mais.
Eram assim as falas da Dona Ermelinda e das senhoras do Projecto designado assim tal e qual: “Dá-lhe uma enxada e ensina-o a pescar”. As senhoras que tinham vindo em dois dias: uma manhã e uma tarde em dias separados, e tinham-lhe dado sementes, e tinham deixado o terreno limpo. E na casa tinham também dado um belo arrumo.
Agora, as favas estavam cheias e haveria já por ali ervilhas e a salsa alastrara pelo canteiro por baixo da laranjeira.
Cristiano ficou de pé ao lado do poço. Tinha muito mais que metro e meio. É uma trave, diziam-lhe, ainda a mãe dele era viva. E Cristiano que não, que não lhe apetecia ir com eles jogar basquetebol. E os eles todos que o chamavam, a pouco e pouco, tinham desistido. Não falhava uma única bola, e era difícil negar-lhe um jeito inato para detectar uma avaria, fosse motor de mota ou de carro, ou o trator que o pai usava para revolver a terra depois de levantar o meloal.
Mas, se o chamavam, Cristiano dizia que não, que logo ia, que amanhã, que depois, e nunca arranjava nem que fosse uma avaria simples, e na oficina onde o pai tinha pedido: “o meu Cristiano tem jeitinho, é só ensiná-lo” tinham desistido.
Que é uma pena, mas a preguiça dá cabo do rapaz, diziam uns e outros.
Um dia o senhor padre disse-lhe, sem rodeios:
– Tu sabes, Cristiano que é pecado muito grave o que tu fazes. A subsistires nesse rumo, vais um dia arder nas chamas do inferno.
Mas Cristiano apenas quando está com fome se lembra desse dito que o padre deitou em cima dele. Apenas quando aparece o bicho que lhe rata uma parte interior do corpo. É só então Cristiano se dispõe a fazer alguma coisa que não seja passar os dias a atirar o pau ao cachorro ou andar pelas redondezas, sem rumo nem destino, uma palavra a um, uma palavra a outro, ou nem isso, apenas andar andando.
É assim Cristiano que nunca foi parvo.
Na escola a professora dizia: “o seu filho é inteligente, mas muito preguiçoso”.
Às vezes pensa se esta sua falta de vontade, esta preguiça imensa, será mesmo pecado. Se não será antes defeito com que ele tenha sido concebido, mal formação vinda nos genes. Coisa de um avô muito antigo. Herança que podia ter-se-lhe dado em zumbido nos ouvidos, ou mal formação no funcionamento de um dos rins, e que a ele tinha dado naquele anulamento com o que quer que fosse que necessitasse esforço.
Cristiano sem vontade de apanhar umas favas, tirar-lhes a casca e colocá-las num tacho com água. Água apenas, que sal não haveria, que ele nem foi comprar depois de ter gasto o que trouxeram as senhoras. Não aquelas do Projecto, mas as outras que vêm mensalmente. Trazem o leite que muitas vezes azedava. Cristiano não gosta de leite frio e aborrece-lhe fazer lume e o leite ali fica, e estraga-se. Cria uma crosta amarelada de tanto que o deixa na vasilha. E se o quisesse nem que fosse morno, não haveria gás. A garrafa acaba-se e é uma trabalheira ir buscar outra, cerro acima, cerro abaixo, que o depósito de reabastecimento fica, lá, no cucurito da Vila.
Cristiano nem gasta o dinheiro da venda dos melões, ou de uma ou outra galinha e de alguns ovos que encontre por acaso debaixo do nariz. Paga a luz e a água, mas nem arranja a casa que foi dos pais e está a cair de velha. Nem telhas novas, nem uma pintura.
Compra pacotes de ração para o cachorro e milho para as galinhas, e pouco mais gasta.
– Parece mentira, Cristiano! Com um terreno destes e nem milho aqui cresce para alimentar os animais.
Ainda anda por ali a ovelha.
As senhoras do Projecto também disseram:
– Mas deixe lá, daqui em diante vai tudo mudar, não é Cristiano?
Eram muito simpáticas, a Dona Ermelinda e as outras pessoas que tinham vindo com ela. E as favas tinham até crescido. E as ervilhas, e a salsa que parecia erva.
Mas Cristiano não colhe.
Preguiçoso. Mandrião.
Dizem assim uns e outros. Ou já nem dizem senão as velhas, aquelas senhoras que sabem todos os pecados. Os mortais e os outros.
Que ele um dia terá o pago, murmuram elas na falta de mais em que se ocupem. Que um dia Cristiano terá o castigo merecido por estar assim, a vida inteira, em pecado grave. E a dizerem deste modo, benzem-se e rezam-lhe pela salvação da alma.

****

Quando a ovelha morrer, Cristiano deixará que o bicho vá apodrecendo tal e qual deixa tudo.
O que ele faz em cada ano é o campo de melões.
Isso, ele tinha prometido e cumpre. E colhe-os e vende-os no mercado.
Mas não vai em busca dum ninho de galinha nem mesmo que seja a preta, e não arranja uma telha ou uma torneira. Nem apanha as favas, nem acende o lume a aquecer um leite, e frio nem vê-lo.
Hoje deitou-se com um ninho de ratos a mordê-lo por dentro.
Cristiano hoje abusou da sorte.
E terá sido este o terceiro dia de Cristiano. Que é ao terceiro dia que Deus toma decisões. Deus que é Nosso Senhor que está no Céu e alumia tudo, e escurece a noite, e envia a luz da lua. Esse mesmo que decretou que a preguiça fosse pecado mortal, decide sempre ao terceiro dia, dizem assim os livros.
E viria já Nosso Senhor matutando seriamente, de tal modo que o perfazer do terceiro dia terá calhado na madrugada do próprio dia em que a galinha preta colocou um ovo sabe-se lá onde. Precisamente dois dias depois de ter morrido o borrego. E no dia seguinte a Cristiano nem ter colhido sequer um pé de favas.
E Nosso Senhor lá do firmamento terá também notado aquela tineta de Cristiano em não aquecer o leite e deixar que azedasse. E terá dado pela falta de gás, e pela sujidade.
Terá sido de tudo isso que Deus decidiu, ao raiar do sol deste mês em que o meloal está quase, quase, e num tempo tal que, se as senhoras que tinham vindo em outros dias, as do Projecto e as outras, tivessem vindo assim tão cedo teriam visto o resultado da decisão d’Ele, que era Cristiano tão imensamente preguiçoso, que nem o cão a trazer-lhe o graveto, nem o sol a bater-lhe em cheio no rosto, nem o pingo-pingo da torneira do lavatório, nem o odor fétido do leite apodrecendo.
Ao terceiro dia, quando Deus decidiu, nada naquela casa tinha retirado Cristiano daquele seu viver para toda a eternidade em pecado mortal.

E eu que escrevo e conto, ainda assim me interrogo se Deus terá decidido do melhor modo. Se não seria precisamente esta a madrugada do dia em que um outro ser celeste, um outro ser igualmente poderoso e igualmente amante dos homens, urdisse o milagre de fazer de Cristiano um homem diligente. Que fosse esse o dia em que ele até cozinhasse uma perdiz trazida pelo Galego, ou fizesse lume para aquecer um leite, ou finalmente procurasse o ovo da galinha e arranjasse a torneira e desse um fim àquele pingo-pingo.






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5 comentários:

Eu já escrevi sobre o tema, mas este texto dá 5-0 ao meu. Bem, daria, se não fosse a quase total redundância do segundo segmento. 2-0

Isto porque ela tinha se esquecido que o dia dela era hoje e pegou "qualquer texto" pra colocar aqui. Esse Cristiano é o pai da preguiça. Mas as descrições Fatimianas continuam ricas, coloridas, vivas, laboriosas.

quer dizer na sua que você tb acha "redundante" o segundo segmento? me explica, vai, Cinthia?!

Eu?! Eu, não! Isso foi o Joaquim. Conhecendo o seu estilo, acho mais que você faz um exercício de idas e vindas proposital, para construir o pensamento de forma mais embasada. Como eu disse, pensamentos laboriosos. O meu "isso" refere-se ao fato de o Joaquim ter dito que seu texto dá de 5x0 no dele logo num dia em que você escolheu um texto de forma rápida, porque estava se esquecendo de postar. Ou seja, foi um elogio!

O Segundo segmento para mim, vem anunciar sem ser pretêncioso, que a vida pode ser repetitiva sen se dar por isso... Eu faço muito isso, e acho tremendo o modo como o conseguiu fazer, mostrando que o repetitivo se transforme em construtivo. De resto achei um texto cuidado, mas quem sou eu para o analizar... Gostei muito como sempre, e como continuo a dizer a quem gosto de ler, OBRIGADO, fico à espera do PRÓXIMO... Réjo Marpa

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