Tenho aguentado no osso do peito, que nem se fala aqui em casa, deboche, piadinha e uma porção de constrangimentos por causa dos meus pavores. Estou crescido para manter alguns medos, dizem com ar de maturidade, como se assombro fosse dente de leite, exclusividade da infância. Procuro ser reservado para que não notem os efeitos em mim e não tornem a futucar naquilo que julgam ser meu defeito. Particularmente, entendo por precaução o que acusam de falta de coragem. No fundo, acho que tenho azar. Muito azar. Só me ocorre esse nome para a quantidade de situações cheirando a ameaça que me aparecem. Deve haver alguma razão cósmica por trás dessa conversão em ímã de perigo. Faço esforço para não transparecer agonia, escondo o suor das mãos no bolso das calças e engulo a palpitação, mas desconfio que os meus olhos se arregalem e me denunciem. Sou o cagão entre os amigos, o perturbado no trabalho e o maníaco da família.
Quando me dou conta já fui invadido. Não sei onde o terror começa, desisti de explicar como se instala e por que demora a ir embora. Ninguém entende e quem tenta normalmente cria caso, querendo me curar, com exercício físico, terapia, reza, benzedeira, conversa fiada, até simpatia com cordão vermelho e capim já me ensinaram. Perda de tempo sem fim. É que eu pulei de fase. Parei de me rejeitar, de me judiar por sobrar um pouco aqui e ali. Excedo nos receios, é verdade, mas sirvo com justeza para tanta coisa que decidi me apegar à porção cheia do copo. E fico lá, grudado no que é presença, enquanto a próxima onda de temor não me avança e me esvazia outra vez.
O processo é cíclico e semelhante à fervura do leite na leiteira: estou em paz até que algo se move de forma suspeita e dispara o pânico, que cresce, cresce, cresce e derrama, fazendo uma sujeira impossível de disfarçar, se o fogo não for suspenso. Agora, por exemplo, enquanto elaboro essas justificativas todas para ser do jeito que sou, é meu horário de almoço e estou diante de um prato quente e generoso de risoto. O aroma sobe até o meu nariz de faminto e esse seria um instante valioso de extremo prazer no meio do meu dia se as inúmeras bolinhas verdes que disputam espaço com o frango desfiado e o arroz não me fizessem recordar o caso terrível da mulher que se transformou em grão ao debulhar vagens na Páscoa, longa e aflita história.
Percebo que estou imóvel diante da refeição. As pessoas das mesas próximas reparam e cochicham e me apontam. Calculo mentalmente o que fazer e decido pela estratégia que me proteja e afaste o apuro. Abro espaço com o garfo na lateral do prato e empurro cada ervilha para longe. Como o risoto com nojo, desprezando a ilha de bolinhas, cheio de náusea. Melhor seria não vê-las. Não tocá-las, sequer com a ponta dos talheres. Nem imaginar o estrago em contaminação de que são capazes. Melhor seria esquecer a mulher-ervilha, mas não consigo. Levo tanto tempo nessa cruzada que sou o último cliente no restaurante. A moça quer saber se estou satisfeito. Sacudo a cabeça que sim. Ela retira meus restos e segue ao pátio por uma porta lateral, onde despeja tudo. Um cão parrudo devora em segundos meu medo mais recente, e bebe água e baba. Então é tarde demais. Sinto minhas costas encurvarem, já sou quase todo ervilha, e nada pode ser mais assustador do que o cachorro que me espia pela fresta da porta.
quarta-feira, 22 de maio de 2013
As ervilhas
por Andréia Pires
2 Comentários
2 comentários:
Ah, os medos! Cada uma mais louco que o outro. Os nossos a gente valoriza; os dos outros são motivo de deboche. É isso mesmo. O personagem é muito bom. Vi a cara dele em síndrome de pânico "ervilhística" total.
:D Síndrome de pânico ervilhística. Adorei! :)
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