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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O prazer de recomeçar do zero uma vez mais


Henry Alfred Bugalho

Este é o terceiro país no qual moramos num único ano.

Viver na Argentina foi uma experiência catastrófica, o oposto do que havíamos imaginado, e mesmo assim suportamos um ano e meio em Buenos Aires.
Já na Itália, foram oito meses numa belíssima, porém tediosa, cidade medieval. A escolha havia sido um erro estratégico, logo reconhecemos, mas nunca comemos tão bem na vida, nem descansamos tanto, imersos no dolce far niente.

O argentinos possuem uma expressão interessante para designar quem não consegue ficar parado: tener hormigas en el culo. Em bom português, "ter formigas no cu", e talvez nada nos definisse melhor. 
Adoramos História, monumentos e ruínas, mas nada melhor do que um bom shopping center, com vinte salas de cinema e uma diversificada praça de alimentação.
Somos urbanos, daquela espécie de pessoas que precisam caminhar sempre por ruas desconhecidas, vendo lojas e restaurantes desconhecidos, cercados por pessoas desconhecidas. Não combinamos com a vida rural, onde todos se conhecem, onde os atrativos se esgotam depois de uma semana, onde os dias são todos os iguais, numa ilusão que nada acontece nem jamais acontecerá.

Por isto, enfiamos todas as nossas tralhas num carro e percorremos dois mil quilômetros para nos livrarmos do marasmo.
Até dois ou três dias antes da viagem, ainda não tínhamos certeza para onde iríamos. Berlim sempre foi uma grande tentação, mas o inverno branco nos desestimulava; quatro invernos em Nova York foram suficientes para nunca mais queremos ver neve na vida.
O problema seria o idioma. Apesar de ter estudado alemão por um bom tempo, hoje mal consigo balbuciar meia dúzia de frases. Impossível manter um diálogo inteligente com outra pessoa. Temíamos isolar-nos ainda mais.
As outras duas opções eram Londres e Madri. A capital britânica possui todos os atributos que buscávamos, mas o custos nos assustaram. Talvez fosse dar um passo muito maior do que a perna.
Já Madri era uma cidade que havia nos encantado numa viagem anterior: limpa, organizada, moderna e, por causa da crise, barata, ou pelo menos muito mais barata do que qualquer cidade italiana. E falar espanhol, mesmo que com um estranhíssimo sotaque portenho, não seria problema algum para nós.
O maior medo era o de nos arrependermos, de nos decepcionarmos com a cidade, um risco que sempre corremos. No entanto, neste caso, sabíamos bem como resolver este dilema. Formigas no cu, bastaria pormos todas as malas no carro e fugirmos uma vez mais.

Quem nos vê de fora provavelmente pensa que somos corajosos, assim como nós um dia havíamos pensado de outros com vidas parecidas à nossa. Hoje, acredito que possa até ser um pouco de covardia de enfrentar ou suportar os problemas de cada cidade, país ou povo.
Deixamos o Brasil porque não podíamos mais aguentar o medo constante e diário da violência, esta falta de respeito absurda pela vida alheia, que pode valer menos do que um tênis ou uma carteira.
Partimos dos EUA por causa do racismo, de um país tão cindido e preconceituoso, onde todos querem devorar uns aos outros. Não é possível passar todos os dias de sua vida atemorizado por causa da cor de sua pele, mesmo que você seja branco, estatisticamente as principais vítimas de crimes de ódio na América.
Fugimos da Argentina pois não tolerávamos a grosseria e a falta de educação dos portenhos, um povo tão amargo e ranzinza que faz questão de atanazar todos os demais até deprimi-los.
E fomos embora da Itália porque desejámos mais do que comida e cama, que parece ser tudo que encanta um italiano.
O difícil foi cortar a primeira raiz, foi começar do zero pela primeira vez, depois, tudo ficou mais fácil.
Inclusive, penso que nunca recomeçamos, ou sequer começamos, do zero. Mesmo quando nascemos, bebezinhos desprotegidos, temos todo um contexto a nos envolver: nossos pais, nossa classe social, nossa nacionalidade, nosso idioma... Não somos uma tabula rasa, uma folha em branco pronta para ser preenchida, e quem acredita em vidas pregressas defende até que trazemos conosco experiências de outras encarnações.

Talvez recomeçar seja recriar-se, numa perpétua tentativa de encontrar seu lugar neste mundão. Fugimos para sermos felizes. Recomeçamos para tentarmos descobrir quem nós mesmo somos.
Afinal, não foi este mesmo ímpeto que levou a raça humana a cruzar, há vários milhares de ano, o estreito de Bering e migrar da Ásia para a América, ou todas a levas migratórias de todos os tempos, gente que vem e vai, transpondo continentes e oceanos, em busca da felicidade?

Recomeçamos porque somos humanos. Recomeçamos para nos recriarmos. E, se por acaso, não for como planejamos, as estradas ainda estarão aí convidando-nos para trilhá-las.

Para acompanhar a nossa viagem da Itália até a Espanha, clique aqui.

Henry Alfred Bugalho
Curitibano, formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino”, "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos, e do "Curso de Introdução à Fotografia do Cala a Boca e Clica!". Após uma temporada de um ano e meio em Buenos Aires e outra de oito meses na Itália, está baseado, atualmente, em Madri, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

http://www.henrybugalho.com/

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3 comentários:

oh! meninos meus que bom saber que ao menos nossos sonhos podem ser realidades nem que seja na pele de outros! isso de andar "fugindo" ...isso de andar "conhecendo"...isso de não ser de nenhum lugar, só que eu faria de auto-caravana ou de comboio, só que eu adoraria chafurdar por aldeias e rumos de pouca gente, que eu pudesse conhecer cada um a cada qual- ou será isso parte da utopia e eu me arrependesse, mas meu desejo era ir ... mas a gente se é o que sonha é também muito a outra parte...
abraços e sabem que vos aguardo

Os anos passam e a gente se esquece do que quer, dos desejos, dos sonhos, dos ímpetos. Aí, acontece um relato limpo, frontal e cheio da mais pura vida, cimo este, e a gente tem saudade do que nunca fez, dos caminhos que não seguiu. Dá uma dor de alma, mas, ao mesmo tempo, uma grande alegria de saber que alguém ainda segue o coração. Sejam sempre ciganos, é o que de melhor lhes desejo,

Obrigado pela leitura, Maria de Fátima e Cinthia.

O que nunca desejamos foi viver a vida que os outros queriam para nós. Todos sabem muito bem como devemos cuidar de nossas vidas, mas parecem ineptos para gerenciarem suas próprias vidas.
Querer tornar-se o que se é não é nada fácil: exige comprometimento e sacrifícios.

Abraços.

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