Quando Latércio Nicolau deixou meu consultório
levando nas costas aquele seu jeito de hiena tristonha, eu juro, Cristina, que
minha consciência profissional quase me fez revelar a verdade por ele tão
ansiosamente procurada. Mas o sentimento de compaixão que sua alma sofrida
emanava, a despeito do sucesso, falou mais alto. A verdade seria por demais
dolorosa, provocando feridas que talvez jamais cicatrizassem, minha cara. Latércio
Nicolau veio a mim à procura de respostas e não em busca de novos tormentos.
É claro que eu sei das minhas responsabilidades
profissionais enquanto terapeuta de vidas passadas, Cristina, mas, entenda: as
circunstâncias do "Caso Latércio Nicolau" são sobremaneira especiais.
Nem tudo o terapeuta deve dizer ao seu paciente sob pena de abalar
definitivamente a sua estrutura emocional. Você, por exemplo, caso houvesse
sido uma sanguinária homicida em outra encarnação, um Nero ou uma espécie de
Hitler, receberia tal notícia com tranquilidade de uma monja budista?
Não, Cristina. Latércio Nicolau não foi um
genocida histórico, apesar de haver deixado para sempre sua marca na
humanidade. Não se trata de fazer suspense, querida, contudo, todo este
episódio de certa forma também me abalou.
Latércio me procurou desejando saber o porquê
da melancolia crônica que o assaltava. Afinal, o homem tem tudo que um pobre
mortal desejaria na vida: fama, dinheiro, uma bela família, realização
profissional e poder. Sim, Latércio Nicolau é poderoso no meio em que milita. E
fico admirado por você, meu amor, ser ingênua a ponto de não perceber tal fato.
Ok, tentarei ir direto ao assunto. Após as
preliminares de praxe, Latércio Nicolau deitou-se ai mesmo, no divã que agora
você se encontra sentada. Parecia amedrontado, como certos doentes que temem
uma cirurgia contudo anseiam por ela na esperança de se curarem. Expliquei os
procedimentos ao meu paciente e iniciamos a sessão relaxando mente. Aos poucos Latércio
Nicolau foi entrando no estado hipnótico e, passados alguns minutos, estava
sobre o meu domínio. Quando julguei ser o momento exato de começarmos a
regressão, perguntei onde ele se encontrava. "No meio de uma multidão.
Vejo pessoas gritando, xingamentos, deboches", ele disse. "Como você
está vestido?". perguntei. "Como um soldado romano. Sou
legionário.", foi a resposta que emergiu daqueles lábios grossos tão
conhecidos do público. Já tinha uma base por onde começar, uma trilha no
inconsciente daquele homem por onde seguir até alcançar o problema que o
afligia quando, inesperadamente ele desatou a falar. Vou ler este trecho
transcrito da fita gravada para você.
"O condenado segue no meio da turba
enfurecida. Sustenta, amarrado aos punhos, horizontalmente por detrás do
pescoço, a trave da cruz. A base é carregada por outro homem, por ordem do
Centurião. O condenado, cabelos compridos à moda nazarena, segue resignado. O
semblante transmite serenidade apesar do sangue que escorre pelo rosto, fruto
dos espinhos em forma de coroa ferindo a cabeça. Chegamos ao monte, chamado de
Gólgota. Deitamos o condenado. Um dos soldados finca um cravo de ferro no punho
direito do homem. Ele emite surdo gemido. Repete-se a operação no punho
esquerdo e nos pés. Erguemos a cruz. Não foi trabalho árduo. O nazareno tem
estrutura esquálida. Algumas pessoas choram em desespero. Na certa
parentes do crucificado. O nazareno pede água. Encosto uma escada na base da
cruz, subo e, jocosamente, ofereço vinagre. Ele cospe. Nossas gargalhadas
inundam o Gólgota. Enquanto disputamos no jogo de dados as vestes do tal de
Jesus, duas outras cruzes são erguidas, ladeando o nazareno. Os outros dois
condenados despossuem da dignidade do homem chamado Jesus. Lamentam suas sortes,
urram desesperados pelo sofrimento. Súbito, uma ideia invade meu cérebro. Pego
um pedaço de madeira perdido no chão e, com ajuda do meu pequeno punhal,
esculpo as palavras "Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus". Subo a escada
e fixo a placa acima da cabeça do condenado. Novas gargalhadas eclodem. Ao lado
do nazareno, rio sonoramente a ponto de quase desabar da escada..."
Permita-me interromper o
relato, querida Cristina. Pelo resultado da sessão já se pode notar que, Latércio
Nicolau, o maior humorista brasileiro de todos os tempos, mestre do riso, é um
homem triste pelas reminiscências de outra vida. E que vida! Sim, você tem
razão. Já na época do Cristo, Latércio Nicolau era dono de um humor peculiar,
ainda que mais negro que a asa da graúna...
1 comentários:
Gostei do texto, prende a atenção até o fim, mas ficou um gostinho de quero mais...
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