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sábado, 16 de junho de 2012

O ladrão e a alma

O nome, Francisco de Assis, recebeu em homenagem ao santo. Virou Fininho por acaso, no seu primeiro assalto. Na hora da fuga, como era magro que nem vara, foi o único a escapar, esgueirando-se por entre as barras de uma grade de ferro. Daquele dia em diante, o apelido pegou e o santo ficou enclausurado na certidão de nascimento.
A mãe, Dona Cidinha, cozinheira de grandes prendas, dentro do possível, deu vida boa a Fininho, porque queria que o menino virasse “um homem de bem”. Não virou. Firmou-se na vida como ladrão e especializou-se em furto a residências.
Fininho adorava a mãe, mas tinha medo dela. Mulher de bondade farta, virava uma fera com os malfeitos que chamava de “coisa do demo”. Quando pegava Fininho chegando muito tarde da farra, ou sentia nele o cheiro de pinga, obrigava o rapaz a ajoelhar-se em frente à imagem de Nossa Senhora das Graças e a rezar duas Ave-Marias em penitência.
Ele protestava, mas ela, irredutível, respondia:
— Reza logo, menino! Uma pelo pecado, outra pelo pecador.
Dona Cidinha jurava que depois das duas Ave-Marias no capricho a Santinha pedia a Deus para perdoar o delito. Por outro lado, se o pecador não se arrependia, e nem rezava, a Senhora pedia às almas do outro mundo para virem atormentá-lo sem sossego. Fininho rezava pelo pavor às almas.
Então, aconteceu o roubo à casa de dois andares.
Era ainda cedo quando Fininho encostou o veículo em frente ao jardim. Proprietário de férias, rua tranquila, tudo corria bem. Usava como fachada para os furtos um utilitário branco, com adesivo de floricultura, e nunca estacionava dentro das casas para não despertar suspeita. Além do mais, desde que Zé Gaguinho, seu primo, tinha se juntado ao negócio, as coisas estavam mais calmas, porque enquanto um vigiava, outro furtava.
Entrou facilmente na casa e foi direto para o andar de cima. Por experiência, sabia que começar por ali era sempre mais seguro. No primeiro quarto, um aparelho de TV e um de DVD. No segundo, apenas material de costura. Ansioso, abriu a porta do terceiro aposento, esperando encontrar alguma coisa que valesse mais a pena.
Na cama, uma mulher idosa parecia dormir. Fininho estacou, sem reação, permanecendo assim por alguns instantes. Mas alguma coisa ali não estava certa. Aproximando-se sem ruído, verificou e comprovou que a coitadinha não respirava. Morta, completamente morta.
Automaticamente, fez o sinal da cruz e rezou duas Ave-Marias. E já pensava em sair quando enxergou sobre a cômoda um colar de pérolas pequeno e uma aliança de ouro. Indeciso, voltou-se para a defunta e desculpou-se:
— A senhora me perdoe, mas isso aqui não vai mais lhe fazer nenhuma falta mesmo.
E agarrou as duas joias.
— Devolva! Isso não é seu! — advertiu uma voz tremida de mulher.
Fininho deu um pulo para trás, apavorado.
— Quem está aí? — perguntou, tirando a arma de brinquedo da cintura.
— Eu, ora bolas! — respondeu a voz.
— Eu, quem? — insistiu ele, sentindo o pelo arrepiar nos braços.
— A pobre senhora de quem você está roubando as joias.
Fininho se apoiou na parede, sentindo-se desorientado e tonto. Mas, recuperando-se um pouco do susto, imaginou que aquilo era alguma brincadeira de Zé Gaguinho para pôr medo nele. No auge da raiva, ligou para o primo, reclamando, mas o rapaz, colérico, respondeu:
— Oooolha peeela jaanela paara a r-r-rrua, seu be-besta! Eu eeestou aaqui na es-es-quiiina, tra-traabalhando! Nãão aaamola!
Tentando impedir que o medo tomasse conta do seu corpo todo, agachou-se, procurando pela voz debaixo da cama. Abriu a porta de madeira do closet e espiou; depois, mexeu nas cortinas. E enquanto o terror tomava novamente conta dos seus músculos, escutou a mulher irritar-se:
— Como é, vai devolver o colar e a aliança ou não vai? — cobrou a voz que parecia de outro mundo.
Jogando os dois objetos de volta na cômoda, Fininho apressou-se em sair do quarto, mas antes que seus pés obedecessem, a voz gritou:
— Nem pense em ir embora agora! Se sair daqui, vai se arrepender!
As almas! As almas de Nossa Senhora tinham vindo persegui-lo pelos pecados, pelos furtos, pela vida de ladrão! Só podia ser isso! Bem que a mãe tinha avisado!
Parado no meio do quarto, tremendo, perguntou, num fio de voz:
— Dona alma, o que a senhora quer que eu faça para me deixar em paz? Diga!
— Pouca coisa. Uma penitenciazinha aqui, outra ali e você pode ir embora, perdoado.
— É só falar, dona alma! O que a senhora quiser, viu? — continuou, sem coragem de olhar para a defunta.
— Vamos lá. Vou lhe dizer tudo o que tem a fazer. Preste a atenção. Primeiro, arrume as camas dos três quartos.
— Como é que é?! — estranhou o rapaz.
— Isso mesmo, e ande logo antes que o meu filho chegue, porque se ele pegar você aqui é cadeia na certa!
De onde é que Zé Gaguinho tirou a informação de que os moradores desta casa estavam viajando? — remoía-se Fininho — Ah, Zé Gaguinho, você hoje vai se ver comigo!
— Alôô! Você ainda não se mexeu, é?
— Mas arrumar as camas lá é penitência, dona alma?
— Ufa! Você nem sabe o quanto! E obedeça logo, que eu não vou ficar aqui discutindo penitência com você não!
Acostumado a ajudar a mãe em casa, Fininho colocou rapidamente em ordem as camas dos três aposentos.
— Posso ir? — perguntou timidamente.
— Que pressa é essa? Você não estava com pressa quando entrou aqui, estava? Ainda tenho mais duas tarefas para você, antes de deixá-lo partir.
— Duas? — ele espantou-se, mas logo se lembrou dos riscos de contrariar uma alma — Então, diga, por favor, dona alma, diga que eu faço!
— Primeiro, varrer a casa. Segundo, preparar o almoço. Só isso. Depois, pode ir embora.
Mas que alma folgada! Folgada e estranha. Arrumar, cozinhar...
 — Está pensando em quê? — interrompeu a voz da defunta — Em desistir?... É isso, não é? Ué, tudo bem. Eu posso começar a atormentar a sua vida agora, quer ver?
— Nem pensar, dona alma, nem pensar! Calminha aí! Só estou achando esquisito esse negócio de a senhora ficar me pedindo pra limpar e cozinhar! Isso não parece penitência... É muito esquisito.
Com uma risadinha que deu calafrios em Fininho, a voz explicou:
— Hehehehehe! É que eu fui empregada doméstica. Trabalhei aqui nesta casa durante muitos anos, até hoje, quando morri. E não consigo pensar num castigo pior do que as tarefas domésticas, hehehehehe! E ande logo! Ao trabalho, meu rapaz! E se quiser falar comigo, volte aqui em cima, porque como eu desencarnei há pouco tempo, ainda não consigo ir para longe do meu corpo. Acho que a missa de Sétimo Dia vai dar um jeito nisso...
Encharcado de suor, aterrado pela companhia da alma, prometendo à Santinha que iria se emendar, correu a se desempenhar das penitências solicitadas. Em menos de uma hora, o cheiro de casa limpa se misturava ao de um almoço simples, mas apetitoso. Retornou ao quarto e chamou a alma, na esperança de ela ter ido embora:
— Dona alma? Dona alma, cadê a senhora?
— Terminou tudo?
Ali estava ela, esperando por ele. Alma chata!
— Terminei. Posso ir agora?
— Pode. Agora pode.
Fininho alcançou a porta em duas passadas, mas, antes de sair, a curiosidade que o atormentava falou mais alto:
— Dona alma — perguntou, sem se virar — a senhora pode me responder uma coisa?
— Depende, meu rapaz, depende do que você quer saber.
— A senhora é uma alma do outro mundo, dessas que só aparecem quando a gente faz coisa errada, ou é uma alma penada, que não encontra rumo e fica por aí vagando eternamente e perseguindo as pessoas? — perguntou de um fôlego.
— Também depende, meu rapaz, depende.
— Do quê? — insistiu Fininho.
— Assim que a gente desencarna, tem que começar a ajudar os vivos a encontrar o seu caminho. Se corre tudo bem, a gente vira alma do outro mundo e vai embora. Agora, se o sujeito é teimoso, insiste nas coisas erradas, a gente vira alma penada e persegue o infeliz para sempre. — disse, dando ênfase ao "para sempre".
As pernas empurraram Fininho escada abaixo, aos tropeções, mas antes que alcançasse a porta da rua, ouviu de novo, bem distante, a voz da alma:
— E precisa rezar, viu meu rapaz? Rezar muito para as almas!
Saiu dali um homem de bem. Sem fazer caso do carro que o esperava com Zé Gaguinho ao volante, desceu a rua feito um louco, repetindo: “Um rosário inteiro, minha Santinha, um rosário inteiro, eu juro!”.

Na casa, uma senhora de cabelos brancos desligou o moderno e potente circuito de comunicação que interligava o closet do seu quarto, onde estivera escondida no último par de horas, ao closet do quarto ao lado, ocupado pela defunta que havia sido sua empregada, companhia e amiga pelos últimos 40 anos.
Entrou no quarto da morta pela porta camuflada atrás das prateleiras do closet, colocou no seu pescoço o pequeno colar de pérolas e, com um ar zombeteiro, disse:
— Quem diria, hein, minha amiga? Afinal, a tal geringonça que o meu filho tanto insistiu em instalar entre os nossos quartos teve a sua utilidade!
Soltando, por fim, uma risada, completou:
— Eu não lhe disse que você podia partir tranquila que eu dava um jeito de me virar?

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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


1 comentários:

Cinthia, você é indiscutivelmente ótima. Essa vai agradar até aos meus netos. A partir de hoje, todo o dia 16 estarei aqui!

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