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domingo, 20 de maio de 2012

O padre e a tia

Os verões na fazenda da família deixaram a memória de Paulo Cássio entulhada de cheiros, sons e sensações. Até hoje fecha os olhos, sente o aromático feijão no fogão de lenha e o gosto da goiaba vermelha, ouve mugidos longos da vaca Amorosa e a voz aflautada de Tia Antonieta
puxando os cânticos na missa, vê a paisagem sem fim de morros sobre morros e o rosto severo do reverendo Batistini, que sempre chegava para o jantar. Era sempre assim. Primeiro jantavam as crianças. Depois, a mesa era reposta para padre agregado e para  a senhora da fazenda.
Tia Antonieta tinha enviuvado cedo, não tendo tempo para  maternidade. Viu-se, pelas trapaças trágicas do destino, herdeira da propriedade. Nem teve tempo para chorar. Vestiu-se de preto até o pescoço, e embora jovem e de traços bonitos, despiu-se da vaidade. Com mão de ferro dedicou-se a cuidar dos bois, dos cavalos, dos porcos, dos pomares, dos empregados e da penca de sobrinhos,
tidos como filhos postiços e temporários, cujos pais os entregavam em custódia à tia durante os quase três meses do verão. Dos quatro aos doze anos, Paulo Cássio não conheceu férias que não fossem de pé no chão, espantando galinhas, montando cavalos em pelo, subindo em árvores, mergulhando no riacho, crescendo junto com primos e assustando o irmão caçula com histórias de assombração.
Na última noite de uma dessas férias, Paulo Cássio teve uma insônia de encharcar os lençóis. Fez de tudo para retomar o sono. Contou buracos na janela, inventou musiquinhas com o ressonar ritmado do irmão ao lado, deu nome às sombras que se projetavam na parede. De tanto esquentar a cabeça, desistiu. Saiu pé ante pé pelo casarão, pisando com cuidado para que as tábuas corridas não rangessem. Olhou bem para os santos em cima da cristaleira, acompanhou com medo os olhos côncavos do Cristo na parede, que seguiam as crianças onde quer que fossem. Apressou-se em alcançar a varanda, por onde desceu lentamente as escadas. Embalado pelo silêncio salpicado de grilos e sapos martelos, prosseguiu seu caminhar curioso, sentindo medo e frisson com o balé das arvores sob e vento e o luar. Rodeou a casa até o lado oposto e estranhou a luz tênue que vinha das frestas de um janelão semi aberto. Lá dentro, o quarto da tia, o misterioso e proibido quarto da tia.
Aproximou-se com as mãos suadas que seguravam o coração, apertou os olhos e paralisou. Viu um vulto de camisola branca acocorado ao pé da janela.
- Quem é que tá aí? Era a prima Irene, na plenitude de seus treze anos, menina danada em corpo de mulher quase feita, rainha das travessuras.
- Pssiu… fala baixo. A tia Antonieta está se confessando ao reverendo Batistini. 
- Como é que você sabe?
- Eu conheço voz de padre.
- E você está xeretando a confissão dela? É pecado, menina!
- Não dá para ouvir direito. Eles falam baixinho. Ela parece que chora. Ele tem problemas de respiração. Ouve só.

Os dois encostam o ouvido na parede, bem embaixo da janela. Ouvem sôfregas palavras, indecifráveis excitações, rezas suspirosas, um rosário de gemidos. Irene pega a mão do primo e coloca no seu coração.
- Sente só. Estou com medo.
- Vamos embora, Irene.
- Não. Fica comigo. É um medão gostoso. Vem cá, vem.

Paulo sente sua mão ser conduzida por dentro da camisola da prima. Primeiro o coração forte, depois um passeio pelos mamilos, pitombinhas delicadas querendo brotar. E segue a mão seu destino insidioso, encontrando com os dedos a nascente úmida da pequena relva que já se formava entre as pernas de Irene. As bocas se encostam provocando uma pororoca de línguas, não tinham idéia que fosse assim. Sem se descolarem um do outro, entrelaçados pelos cordames dos instintos, a mão da prima vasculha o pijama do primo, descobrindo o que há de mais quente, indócil e pulsante naquela tenra idade. As ditas orações sôfregas vêm das frestas da janela com mais intensidade. Ao mesmo tempo, na tocaia embaixo do parapeito, Irene e Paulo Cássio, aos toques de mãos e esfregações inocentes, entram no mesmo ritmo do padre e da tia, e atingem a uma sensação jamais imaginada. Extasiados, se abraçam apertado quase sem fôlego.
- Que é isso? Sentiu o que eu senti? De onde veio? Para onde foi?
- É o diabo, Irene, vamos embora, tô morrendo de medo.
- Não, seu burro. Foi um anjo que entrou por dentro da gente.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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