Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Vida de flor

          É hábito meu apreciar jardins. Eu poderia olhar e me encantar também com o céu, todos os dias, mas o céu às vezes fica tão sensível que se derrete em lágrimas. As flores têm sempre mais humor.
Faço caminhadas diárias, comandadas pelo medo de sentir cessar as batidas do único amigo verdadeiro de uma existência inteira. Não me importo de ser velha ou jovem. Não me impressionam as rugas, a perda de visão gradativa, a imperfeição dos dentes. Para tudo isso, se eu quiser, há remendos humanos. O que me importa é muito mais que um amontoado de pendengas físicas. Eu quero vida. E foi dessa senhora que de nós se separa apenas uma vez que meu coração recebeu avisos para se cuidar.
Mas não me basta caminhar e assumir a rotina do passo a passo em frente a casas inertes, prédios-esfinges. Isso me irrita, me fatiga a paciência que já se faz tão curta. Para desfazer esse cansaço que as coisas imóveis costumam provocar, eu me distraio, em qualquer caminho, perscrutando jardins. Sou capturada pelo frescor de uma alameda, pela cor de um ramo florido, por uma folhagem que brinca com as nuanças do verde.
Prefiro, com toda a certeza, um jardim que fica na rua de cima, a despeito mesmo do pequeno aclive que preciso encarar no caminho. É um jardim irregular, desses que talvez escape a olhares mais estéticos, mas é tão, tão... coerente que não permite reparo! Ostenta uma poda necessária, mas não excessiva, uma ordem desorganizada no plantio das flores, um inteligente desprezo pelo convencional.
Parada em frente ao muro baixo que me separa do universo de seivas, medito sobre a beleza das coisas que não têm padrão. É um jardim com caráter. Tem sofrimento plantado aqui. E esse muro simbólico que o circunda é somente uma sentinela a proteger algum recato.
Abaixo a mão furtiva sobre uma cinerária lilás e arranco-a da folhagem cinza com a sofreguidão dos invasores. Pego a menorzinha de tantas, para que meu pecado tenha igual penitência. Tomo cuidado em não pisar na grama e respeito o rubor de um hibisco que parece se envergonhar do meu atrevimento. Dias após dia, incentivada pelo sucesso do primeiro delito, furto de novo. E o instante da posse é sempre afogueado e pleno.
Mas o que é isso? Tenho a sensação de um olhar sobre o meu ato... Talvez seja mais sensato cumprir a vontade imediata dos meus tornozelos, mas correr é prova do delito! Melhor ter certeza, primeiro, de que há mesmo um olhar. 
A janela da frente é a minha primeira opção. Levo os olhos medrosos até a vidraça entreaberta, preparando um sorriso convencional e uma fala improvisada. Ninguém está lá. Olho a porta, percebendo a solidez das trancas, e desejo ser menos cismada. Mas que coisa! Soltar um suspiro logo agora! Os suspiros sempre acompanham os malfeitos. Olho para o céu, disfarçando a busca, e é exatamente neste giro de olhos que me choco com a presença de um homem me encarando da varanda do andar de cima.
— Bom dia! — arrisco.
Um aceno de cabeça é tudo o que recebo do taciturno.
— Desculpe ter arrancado uma flor. É que o seu jardim é tão lindo!
Arrancar? Como então começo a minha confissão de culpa comprovando a brutalização daquele montinho lilás que escondo atrás do corpo!
Recebo um frio “Está certo”, distorcido pela grata distância entre nós. O homem se volta e entra, me deixando com a lembrança incerta de um sujeito alto, magro, de meia-idade, assim como eu. Chego a imaginá-lo pálido, mas não sei se houve entre nós  espaço suficiente para garantir essa percepção. Ele se foi rápido, e eu me vou mais rápido ainda!
Enquanto caminho, suada pelos passos apressados da fuga, encaro o fato de que o meu humor está em frangalhos. Eu me tornei uma assassina de flores! Arrancando as pequeninas da sua mansão de sol, chuva, vento, liberdade! Destruindo suas forças, roubando-as da companhia amiga de outras flores! Aquele homem frio e taciturno é, agora, por minha causa, um criador sem criatura. A vida que tanto almejo reter é a mesma que arranco de uma simples flor de jardim!
Não estou acostumada a me ter como egoísta, muito menos a pensar em mim como alguém propenso ao fim das coisas. Sou pelos começos, pelas permanências, pela duração. E é por isso que decido não cessar os meus passeios matinais. Não posso permitir que nada além de uma noite de sono me separe das caminhadas que me fazem tão bem. Nem a descoberta do desequilíbrio que faz de mim uma mulher de contrastes.

Hoje, caminho por outras ruas, outros quarteirões, mas não adianta!  Meus pés se contorcem teimosos em direção ao aclive. Melhor não resistir à ansiedade que me descompassa o coração. Pode ser fatal. É preciso promover um encontro urgente com os acontecimentos.
Estou aqui, de novo, nesta rua tão prazerosa. Tomo fôlego porque a tarefa é árdua: preciso pedir perdão às pequeninas.
Sobre o murinho, me enfeitiçando, um gladíolo alaranjado, ainda fresco. Parece deitado à espera de alguém. De mim?! Impossível! Que pretensão sem sentido! Mas está aqui, solto, lânguido, sem dono. Então, é meu!  E o perdão vai esperar por outra hora.

Já faz dias que é assim. Talvez semanas, porque mesmo agora que o inverno chegou, e as flores se recolheram para dormir um pouco mais, encontro no muro, a cada dia, uma rosa, uma cinerária, uma margarida. As minhas noites se resumem à antecipação da flor da minha manhã. Vez ou outra, levanto os olhos e recebo o mesmo contido aceno do homem alto, magro e de meia-idade. Existe aconchego no gesto diário desse amigo que não conheço. 
Não me sinto mais ceifando a vida das flores. Recebi, num sussurro de folhas, o segredo das pequeninas, a me dize que foram mesmo feitas para serem arrancadas. São como as pessoas: germinadas com um destino. Têm começo, meio, fim. Inquietam-se, gemem, choram, rejubilam-se. E aí, brilham. Como as pessoas. Depois se vão para um não sei onde, cumprido o seu papel na perfeição de Deus.
É com as flores que a minha crença miúda se converte. Não há mais o Deus que tripudia de mim, despejando nos meus anos dor, velhice, morte! O Deus das flores me diz para arrancar o que eu preciso. E diz a elas que se doem a mim.
Não há culpas.
Olho as pequeninas estendidas preguiçosamente ao sol e me lembro das pessoas que esbarraram em mim durante toda a minha vida, ora me entregando cor, beleza, frescor, ora me pedindo ajuda, conselho ou simples companhia. Penso em quantas vezes arranquei essas flores e em quantas vezes me neguei a ser arrancada. A gente entrega o que tem, recolhe o que precisa, até que de tanto retirar e repor chega, enfim, a hora em que cessam as barganhas. 
Amanhã, eu venho de novo. Quero dizer olá ao meu amigo que não conheço e agradecer a ele cada flor que o muro me entregou. Pode ser que eu aprenda com ele a remexer a terra, a plantar, a saber o momento de colher para entregar.
Quero essa vida de flor que ainda tenho tempo para começar. Quero ser eu também semeada, e cuidada, e afagada. Quero ser um jardim. 
E quero ser arrancada todos os dias. 

Share


Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


2 comentários:

eu tinha sentido erotismo
um erotismo insinuando-se na doçura que rescendia na fragrância das flores
e reli
e lá estava ele, doce como só podia ser o erotismo em vida de flor (ou quiçá...)

Bem conseguido final, que não chega a ser reviravolta, antes se adivinha chegar de mansinho. Não é uma punch line, é uma caress line.

Postar um comentário