Joaquim Bispo
Na minha rua, existe um personagem singular – um comedor de jornais. Devora todos os que encontra, quer os que são abandonados nas mesas do café, quer os que o vento empurra rua fora. Uma vez por outra, até já o vi debruçado pela abertura do Papelão.
Como seria de esperar, está sempre bem informado, quer das notícias do dia, quer das anteriores, que já todos esqueceram. As conversas que mantém à tarde parecem o noticiário da rádio local, no dia da folga do jornalista. As da manhã, também. Por uma razão ou por outra, é objeto de veladas animosidades, fundadas na bizarria dele.
A mulher que salga sempre a comida inveja-lhe a memória. O rapaz que sonha com pescarias no tanque do fontanário diz que ele assusta os peixes com o ruído que faz a mastigar. As primas que plantam jacintos nos charcos da calçada criticam-lhe a voracidade. O oriental, de cujo livro de folhas perenes se escapam, por vezes, pétalas coloridas, olha-o com desconfiança.
Todas essas queixas recorrentes desapareceram a semana passada, repentinamente, como que por influência dos astros. Quando saí de casa, para comprar as pevides de melão matinais, as conversas esvoaçavam à volta do Papa-jornais. Todos gorjeavam a bondade desta figura grada da terra, que devia dar nome a um dos camiões do lixo, gabando a utilidade da sua preferência gastronómica para o asseio do bairro. E lamentavam-no com lágrimas e meias-de-leite. Disseram que tinha havido uma distribuição maciça de jornais gratuitos e ele morrera de indigestão, mas eu depois li um desses jornais e percebi que não terá sido indigestão mas intoxicação neo-liberal.
2 comentários:
Isto é mentira; eu não salgo sempre a comida. Deve ser invenção do vizinho que almoça com os canários. Uma vez por outra esqueço-me que já pus sal, só isso!
Gosto do realismo fantástico pelo tanto que permite criar. Mas o que mais me chamou a atenção nesse seu texto foi o final, onde o cunho político deu um sabor especial ao texto. A frase final é a sua cara, a sua assinatura.
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