Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sexta-feira, 23 de março de 2012

Os anjos dormem


O homem declara o amor à sua própria vida,
Quando deixa o irmão entregue ao perigo.

Estávamos Camila, Frederico e eu no ponto de ônibus, em frente a faculdade. Enquanto esperávamos, falávamos sobre violência dos dias atuais. Ficamos surpresos ao perceber que nós e nossos amigos estávamos tão próximos de crimes.

Camila nos contou que uma vizinha de sua tia, uma menina, havia sido estrupada na semana passada. O crime aconteceu quando ela chegava em casa. Foi até reportagem na TV, disse Camila. Frederico nos falou, que certa vez fora assaltado quando estava pagando a mensalidade da faculdade. E não foi na rua, foi dentro da faculdade mesmo, renderam os seguranças e levaram o dinheiro da faculdade e dos alunos.

Antes, que eu pudesse contar o que aconteceu comigo, meu ônibus chegou no ponto. Despedi-me as pressas dos meus amigos e subi na condução. Entrei no ônibus pela porta traseira. Aguardei os outros passageiros passarem pela roleta e pagarem a tarifa. Quando chegou a minha vez, paguei a tarifa, passei pela roleta e sentei-me na janela, próxima a porta dianteira, pois ficara melhor para que eu descesse e pegasse outro ônibus para casa.

Encostei minha cabeça no vidro da janela e naquela mistura de cansaço e sono, deixei o pensamento fluir. Pensei na conversa minutos atrás, na violência que falávamos há pouco; percebi que de certa forma éramos privilegiados, pois por mais próximo que estivéssemos de crimes, de área perigosas, nada de grave havia acontecido conosco ou com a nossa família. Sim, é verdade andávamos por bairros perigosos. As cidades grandes tem dessas coisas. Todo mundo pensa que vai conseguir um emprego nelas, então todos se mudam para os grandes centros, as empresas crescem, a população aumenta, mas chega um momento em que não há emprego para todos, então as empresas selecionam melhor. Muitos perdem seus empregos e em um instante se veem sem dinheiro e com contas para pagar; precisam pagar o aluguel, a luz; precisam comer e, quando se tem filhos para alimentar, não é difícil entender porque alguns ficam ficam desesperados. Saem para rua, começam a roubar, mas como nem todas as vítimas tem dinheiro, precisam roubar mais e, às vezes, por medo matam. Logo uma rua ou um bairro que era tranquilo passa a ser perigoso, passa a ser visado por bandidos. O caminho para chegar até casa da minha mãe tornara-se um desses lugares. Imaginar que na minha infância, no verão, corríamos de pega-pega e brincávamos de esconde-esconde até dez e meia, onze horas da noite, sem nos preocupar com assaltos ou bandidos.

Hora de descer. Fui atrás de um rapaz, bem arrumado, carregava uma bíblia no bolso. Pensei comigo não deve ter muito na mesa, mas paga o dízimo todo o mês. Atrás de mim desceu uma menina. Percebi que nós três caminhávamos na mesma direção, até o outro ponto de ônibus. Assim como eu, acredito que eles também estavam cansados e com frio. Meu pensamento estava solto e peguei-me a pensar sobre o frio. A noite não estava gentil, muito frio e vento na rua. O tempo era cruel com os pobres. Com os ricos também, mas os pobres passam mais tempo na rua, desabrigados; os ricos tem seus carros e suas casas. Até casa de pobre era fria, sem ar condicionado ou aquecedor para aquecer a casa. Lembrei uma frase que ouvi de um senhor no ônibus uma vez, "frio existe para matar pobre. Já viu rico morrer de frio?" Aquelas pareciam tão reais agora.

A distância parecia maior do que eu lembrava-me, talvez por causa do frio. Caminhávamos no mesmo passo, o menino mais a frente eu no meio e a moça atrás. Do silêncio dos nossos passos, ouvi um grito "Não se mexa, que te meto bala". Não era comigo, mas olhei para trás, vi que um ferro brilhava no escuro, era uma arma. O rapaz na minha frente também olhou para trás e quando ouvimos "Não corre !!! Que te mato", ambos corremos. Passamos por uma esquina, olhei para ver se a menina também corria, não vida nada. Uma moto passou pela gente, de uma parada, vi que eles nos olharam e seguiram em frente. Enfim, chegamos até o outro ponto de ônibus, envolvidos no nosso egoísmo estávamos salvos. 

Eu e o rapaz chegamos a trocar duas palavras. Já não era tão desconhecido, parecia-me que eramos amigos. O ônibus deles chegou e ele partiu. Quando o meu ônibus chegou, eu ainda estava com medo, mas quando sentei no ônibus e relaxei, outros sentimentos me envolviam. Percebi que havia ganho na loteria da vida, mas não conseguia deixar de ver nas lembranças da minha mente, os olhos daquela menina que pedia ajuda, comecei a ter vergonha; vergonha de ter sido egoísta e covarde; de não ter tido coragem para socorrê-la. Parei e pensei o que poderia ter acontecido a ela. Não tinha ainda pensando nela até o momento. Ela poderia ter ficado sem nenhum trocado, poderia ter sido morta, talvez sido estrupada. Talvez estivesse rindo dos babacas que correram. 

Não sei o que houve com ela, sei que senti-me como um covarde e mal conseguia me engolir. Vi o meu reflexo no vidro do ônibus e não consegui encarar. Tomei uma decisão. Apertei o sinal para descer. Precisava saber o que tinha acontecido, corri até a primeira esquina e nada enxerguei; senti o mesmo medo de antes, mas lembrei do meu reflexo e decidi continuar. Vi que tinha algo no chão, parecia um corpo. Era ela deitada e sorrindo. Um sorriso lindo de quem ri de um babaca. Ouvi então uma voz das sombras “até que enfim alguém apareceu”, quando me virei tudo era escuridão.

Share




3 comentários:

Final surpreendente e incómodo.
Também me surpreendeu que a menina ainda lá estivesse deitada tanto tempo depois.

Sabe Joaquim, a primeira versão tinha ficado bem diferente, só tentei manter a ideia original. Embora o incômodo do final tenha sido almejado, você me trouxe um problema que até então não era um problema :-)

Talvez saia uma terceira ou quarta versão ainda :-)

Obrigado pelo comentário

Não foi assim tanto tempo, para ficar deitada no passeio, a sorrir.
Ela já não estava à espera, acho eu.

Postar um comentário