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domingo, 20 de junho de 2010

Vertigens de um recomeço

Léo Borges


Dizem que se o sol morresse agora ainda viveríamos em sua presença por mais alguns instantes, suficientes para que nosso padecer se iniciasse sob luz. Nágila não era mais meu sol, talvez nunca houvesse sido como queriam me fazer acreditar, mas a solidão, sim, essa era minha, tal qual um sol escuro e morto, com débeis raios de lembranças, saudades que demoram a sumir.


Alguns diziam que minha ingenuidade me impedia de entender a palavra ‘traição’. Mas porque eu deveria entendê-la? Eu vivia bem sem ela. Eu só não vivia bem sem Nágila. Não me adiantavam as inócuas teses dos poetas, psicanalistas, amigos, doutores, mestres em dores da alma, angústias, vertigens, assuntos que só o verdadeiro coração dilacerado domina.


Ipês tristes me escoltavam por aquele caminho de terra vermelho-sangue até a Cachoeira das Vertigens, local de nome sugestivo, pertinente aos espíritos aflitos. O canto dos pássaros soava cinza com seus réquiens indiferentes à infelicidade humana. Recomeçar. As cigarras e seus silvos tão fortes quanto breves explicavam o verbo usado por Nágila. “Quero conhecer outros mundos”. “Ela está te trocando por um sujeito da cidade”. “Vou fazer um curso”. “Só ficou contigo enquanto isso era útil”. “Será bom passear pela praia”. “Ela tem um caso por lá”. “Meu coração é seu”. “Nunca mais vai voltar”. “É só um recomeço”. “É o fim”. Vozes aleatórias – explicativas ou acusatórias – se entranhavam em minha mente, zunindo como açoites, castigos que eu recebia sem saber o motivo. Esqueciam que eu não acreditava em indícios, em palavras racionais, que sempre aceitei melhor a inocência das emoções. Mas os argumentos, frágeis como alegria resignada, continuavam brotando de todas as partes, em sua ânsia por vitórias sem sentido, sem uma razão que curasse minha ferida. Se meus amigos enxergavam o mal, eu os compreendia, queriam meu bem. Se Nágila mentia, eu estava ali para ouvir, tolerar, mesmo que todos esses truques só servissem para eliminar o obstáculo final para o seu reinício: eu. Fui excluído de sua vida para que suas ambições urbanas aflorassem, crescessem da forma como ela queria, sem cheiro de mato, sem céu de estrelas, sem água da pedra, sem meu sorriso por vê-la. Muito provavelmente amar incondicionalmente fosse isso mesmo: permitir ao invés de questionar, libertar antes de exigir, recomeçar para não entristecer.


O barulho da cachoeira já refrescava meus pensamentos. Perto de um dos cantos do lago observei minha imagem na superfície trêmula e vi um homem compreensivo com sua angústia. Dei um sorriso, coisa que não fazia há algum tempo. Com as mãos banhei meu rosto e procurei admirar a grandiosa queda d’água. Impressionante como ela estava mais densa, mais próxima de um cenário natural e não de um sonho. A Cachoeira das Vertigens possuía a peculiaridade de ser sempre interpretada pelo capricho crítico de seu admirador. Era o colírio de turistas, mas transformava-se em espaço lúgubre para os mal intencionados. Casais apaixonados a tinham como um paraíso terrestre, enquanto que para solitários era o ombro companheiro. Não raro, homens eufóricos subiam até o cume da rocha principal para declamar o amor por suas mulheres, atitude esta potencialmente valorizada pelo perigo daquela área.


Imerso em meus devaneios eu acreditava ter como únicas companheiras as trêmulas folhas das palmeiras e a brisa serena que circulava por entre a mata . Foi quando notei na parte direita de uma das pedras um vulto feminino. Agucei o olhar e percebi que era Nínive, uma moça que, assim como eu, também morava e trabalhava na região. Nunca a reparara bem porque até então meus olhos só se serviam de Nágila, mas sabia que ela era noiva de um fazendeiro. Procurei decifrar o que ela fazia sozinha ali, já que, até para experientes guias, aquela parte da cachoeira era muito traiçoeira. Acenei com as mãos. Ela viu, mas não respondeu. Seu rosto denunciava uma chaga na alma, uma tristeza semelhante a que eu despejara no lago minutos atrás. Um pânico atroz dominou minhas ações quando vislumbrei em seu semblante uma intenção de autodestruição.


Corri por entre a mata lateral, escalando aos pulos e tropeços robustas pedras escorregadias, alheias ao desespero da situação. Gritei para que ficasse parada até minha chegada, ouvindo como resposta apenas o eco de minhas próprias súplicas. Ao chegar perto de onde estava pude me certificar do risco real que sua vida corria. Nínive estava descalça na parte onde a incidência de lodo era maior, sem nenhum apoio para as mãos. Sua expressão carregada de mágoa evidenciava claro desejo de morte. A primeira coisa que fiz foi pedir para que ela não se mexesse. Chorando, ela disse em baixa voz para que eu não me intrometesse em sua vontade. Coloquei-me o mais perto possível de onde estava, num ângulo inferior, amparado pelo galho de uma árvore, com o braço estendido. A água fria fluía forte por entre seus pés.


– Nínive, olha, não conheço sua vida nem sei o que te trouxe até aqui, mas se você fizer isso a vitória será dos seus problemas.


Sua cabeça não levantou e seus olhos permaneceram namorando o precipício.


– Eu não quero vitória, Julian. Eu só queria que respeitassem meus sentimentos. Mas não adianta... quem é você para entender alguém abandonado pelo amor?


– Talvez alguém que também tenha sido.


A moça ergueu a cabeça e finalmente nossos olhares se sintonizaram. Uma fina chuva começou a cair sobre a Cachoeira da Vertigem. O risco de queda aumentava a cada segundo. Nínive comentou sobre o motivo da decisão derradeira.


– Meu noivo me largou para ficar com minha irmã. Tiveram um relacionamento durante meses sem que eu soubesse.


– A mulher que eu amava foi embora para a cidade. Disse que tinha várias ambições, mas eu não estava incluído em nenhuma delas. Meus amigos contam que ela me trocou por outro.


– O apoio de meus amigos não serviu para juntar meus pedaços. Victor e Ariadne foram embora e me deixaram aqui, morta – falou, como se ali só houvesse um corpo oco, sem sangue e sem espírito.


– Oportunidades aparecem a cada momento para que possamos viver o que ainda não vivemos – disse, mantendo o braço esticado.


Nínive relutava em receber a ajuda. As gotas da chuva se confundiam com as lágrimas em seu rosto. Um de seus pés derrapou.


– Segure minha mão. Vamos conversar um pouco. Só estou pedindo um minuto! Nem é tanto tempo assim...


Finalmente Nínive cedeu e segurou meu braço. No momento em que sua perna buscava apoio na parte seca, escorregou. Segurei-a com força enquanto ouvia seus gritos cortando o ar. Com alguma dificuldade, abracei sua cintura e a puxei com firmeza para, então, cairmos entre as árvores. Olhei com muito afeto para seu rosto afogado em medo e desilusão. Seus cabelos molhados deixavam expostos apenas parte de sua face de traços angulosos, o suficiente para perceber o quanto era bela.


– Por que as pessoas fazem isso com quem as ama? – indagou Nínive querendo uma resposta impossível.


– Não acredito que seja por ódio. Pode ser egoísmo, mas quem não é egoísta? Eu queria Nágila, ela queria ouras coisas. Talvez um dia ela também queira algo que não possa ter. Acho sinceramente que na vida podemos ter tudo o que almejamos, só que existem coisas que não deveríamos almejar.


– Não! As pessoas não se preocupam com o sentimento de quem as ama de verdade. Mas e daí, né? O que vale é seguir seu caminho, independente do sofrimento que se vai causar em quem se doou por um relacionamento, em quem foi seu amante. ‘Seja feliz’, esse é o lema. Engraçado como eu queria que todos fossem felizes: meu noivo, minha irmã, meus amigos. Mas e a minha felicidade? Sei lá onde ela está. Deveria estar ali embaixo agora, junto das pedras, mas nem isso você deixou.


O pranto de Nínive era tão sincero quanto minha vontade em estancá-lo. Involuntariamente a moça apoiou sua cabeça em meu ombro, soluçando. Afaguei sua cabeça com carinho verdadeiro, procurando aliviar sua dor. Suas mãos juntas escondiam a face de uma vergonha que não era dela.


– Sabe, Nínive, eu amava tanto minha namorada que agora fico feliz em saber que ela foi embora.


– Como assim?


– Se ela está realizada com outra pessoa na cidade, por que eu deveria ficar triste? Penso que amar de verdade é querer ver o outro sempre feliz, estando ou não do nosso lado.


Os olhos de Nínive fixaram-se nos meus. O sentimento de fim que havia neles evaporava, cedendo espaço a interesses vívidos. Seu equilíbrio voltava ao normal fazendo com que percebesse a insanidade de seu ato no alto das Vertigens.


– Nem sei o que fazer para poder me desculpar pelo que fiz você passar – disse ela olhando o ferimento em minha perna ocasionado por uma pedra.


– Se você sorrir já vai bastar.


Um tímido sorriso emergiu sincero em seu rosto, convidando sua beleza a sair do anonimato. Seus olhos castanhos brilhavam como se dentro orbitassem pérolas. Pude sentir sua respiração quente muito próxima de mim. Como ímãs, nossos rostos foram se aproximando até que nossos lábios se encontraram. Um sabor fresco, de vida intensa, aportou em minha boca. Havia tempo que não sentia o gosto de uma mulher, sendo que nos últimos anos o único que provara havia sido o de Nágila. Aos poucos, sob o agora vivo ruído da queda das águas, tudo foi se tornando mais gostoso e ardente. Impressionava como a vida poderia nos surpreender com situações tão antagônicas, destino que, de uma angústia profunda, se transformava em vibração positiva, desejo pujante, de impensável plenitude.


Uma conexão de sabor indescritível conquistou nossas almas. Viajando visceralmente por minha amante, saboreava cada espasmo sentido, cada limite conquistado, cada gemido ouvido. Ao tempo em que nos fundíamos, a chuva triste abandonava a Cachoeira das Vertigens, dando lugar a um sol discreto, cujos raios luminosos faziam brilhar ainda mais o colo de minha ninfa. Nágila, Victor, a chuva e as lágrimas já eram passado, lembranças remotas, tão esquecíveis quanto dores infantis. Real era Nínive, seu corpo, sua boca e nosso prazer. Eu percebia que o tempo agora era um aliado e que nada mais importava além da oportunidade que nos foi dada: um recomeço – vertiginoso como se apresentava, mas integral também por isso. Entrega e renascimento traduzidos em fluídos e emoções que brotavam por entre ecos vindos das pedras, reencontrando emissores envoltos em orgasmos possíveis, libertos das profundezas do ser.


A reflexão serena que se seguiu nos manteve calados – até porque tudo já havia sido dito. E a refrescante orquestra das águas naquela cachoeira trouxe sensações impregnadas de vida, vertigens que, agora eu entendia, tinham força para sobrepujar cicatrizes através de um simples recomeço.

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1 comentários:

é uma pena a revista terminar assi, assim.. Mas, o seu conto tão intenso não me comoveu até porque não credito em amor/paixão tão repentina. Poucas horas ( minutos?!) para uma mudança brusca não me dconvence .A liguistica foi fantástica ... Mellzel

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