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segunda-feira, 10 de maio de 2010

A Vingança de Bento Julião

Ô, moço, até onde eu saiba, esta briga vem de muito tempo. O que falam é que tudo começou por causa dum bocado de terra, ali perto do ribeirão: algum pelintra vendeu o terreno pro avô do cabo Pires e pro avô do Bento Julião ao mesmo tempo.
Os dois eram fazendeiros e, mesmo que a terra fosse ruim — só dava pra pasto —, nenhum deles iria abrir mão.
O antepassado do Bento ergueu uma cerca pra indicar a divisão, mas o outro foi lá e derrubou. Daí, ele foi e ergueu outra cerca, que também foi derrubada. Ergueu uma terceira e, desta vez, deixou uns capangas de tocaia.
Quando os filhos e empregados do avô do cabo Pires foram pôr a cerca abaixo de novo, os capangas do Julião abriram fogo e encheram a rapaziada de chumbo. Foi uma correria, um chororô, mulher berrando por causa do marido morto, criança gritando porque o papai ‘tava no Céu, uma comoção na cidade.
A guerra se instaurou. O avô do Pires chamou uns primos, que haviam lutado no Paraguai contra Solano López, e foi uma carnificina. Todas as noites, um invadia o terreno do outro, tocava fogo nas casas, degolava os bois, e trocavam tiros até o sol nascer.
A população da cidade estava aterrorizada, tanto que o governador enviou um destacamento de soldados pra apaziguar os ânimos. E mesmo que não houvesse novos ataques, as duas famílias continuaram se odiando por todos estes anos.
Se um Julião se encontrasse com um Pires na rua, eles mudavam de rumo; se um entrasse numa casa, o outro saía; se um se casasse com uma guria, nenhum homem da família rival podia se casar com achegados dela. E toda a cidade se dividia: havia os partidários dos Julião, e os dos Pires; ninguém se manifestava publicamente, mas cada um tinha sua predileção.

O cabo Pires e Bento Julião eram pessoas completamente diferentes.
Todo mundo gostava do cabo Pires — crianças, velhos, coroinhas e principalmente as meninas. Era um rapaz bom, daqueles que só sabe fazer o bem e falar a verdade.
Já Bento Julião era o cão feito gente. Dava petelecos na piazada, roubava as vendas, deflorava cabras e havia rumores de que ele tinha um pacto c’o diabo. Era tanta maldade numa só criatura que as pessoas até sussurravam quando mencionavam o nome dele.
E não é que o filho-da-mãe do Bento Julião se engraçou com a caboclinha do cabo Pires?
Era o papo nos botecos e nas vendas, cada um cochichando sobre isto, mortos de pena do bondoso cabo Pires:
— É uma pouca vergonha, um homem tão bom carregando este par de galhadas!
Mas o cabo Pires, ingênuo, nunca desconfiava de nada. Tinham dó dele, mas onde estava a coragem pra falar?
Um dia, seu Zé do bazar se cansou:
— Ô, cabo Pires, se eu fosse ‘ocê, corria pra casa agorinha mesmo.
— Por que, seu Zé?
— “Quem avisa, amigo é”, cabo Pires, e eu levava também a garrucha.
Isto bastou pro moço, que, co’a espingarda na mão, chegou em casa num piscar de olhos. Pegou Bento Julião e a caboclinha com as calças nas mãos, ou melhor, com as calças no chão.
Cabo Pires deu tiro pra todo lado, matou a caboclinha e acertou os fundilhos do Bento Julião, que fugiu, sangrando e berrando, pela janela.
O cabo se tornou herói na cidade, além de bom moço, ele também honrava o que tinha no meio das pernas. Ele se amasiou com uma polaquinha formosa e teve dois pimpolhos.
Foi então que o convocaram pro Contestado e, por um par de meses, ele lutou contra os revoltosos. Quando voltou pra casa, os amigos o avisaram:
— Cuidado que o Bento Julião voltou querendo vingança.
O coitado do cabo Pires quase borrou as cuecas, morria de medo que este dia chegasse. Ele não conseguia mais dormir, pra não ser pego desprevenido; sempre mudava de rota, pra não ser emboscado; e não se separava mais do bacamarte.
Especulava-se o que Bento Julião tinha feito neste tempo em que ficou desaparecido. Dizia-se que ele tinha vagado pelos Campos Gerais, pilhando, matando e estuprando, mas também havia histórias de que ele tinha virado tropeiro, ou matador por contrato e que carregava quinze mortes nas costas. A única certeza era que, na luta de faca, ninguém melhor que ele havia, e Bento andava alardeando aos quatro ventos que ia arrancar com seu punhal o coração do cabo Pires.
Numa manhã, a polaquinha foi chorando contar pro cabo Pires que tinha visto o malvado rondando a casa. Ele tomou, então, uma resolução importante: mandou a polaquinha e os barrigudinhos pra morar com os pais dela e ele rumou pro interior, pra fugir da morte.
Bento Julião ficou puto ao saber da fuga do inimigo. Foi atrás. Cruzou os Campos Gerais e chegou até o Paraguai, depois desceu até a Argentina e voltou pro Paraná. Descobriu que o fujão estava entocado numa vila ali perto e rumou pr’aquela direção.
O cabo Pires estava cansado de rodar o mundo, por mais que tentasse, não conseguia se livrar do bicho-homem que o perseguia.
— Basta! Vou me bater c’o desgraçado — o cabo Pires carregou a espingarda — Ele é bom co’a faca? Mas quero ver como ele se sai contra o meu trabuco! — e ria sozinho, meio enlouquecido.
O sol estava nascendo. Bento Julião chegou junto com o vento da manhã. Veio andando pelas ruas, procurando um canto pra se enfiar e descansar, mas, no fim da única rua da vila, avistou um homem.
Era o cabo Pires.
— Acabou, Bento, é agora ou nunca! — cabo Pires urrou, parecia até um animal selvagem.
Bento Julião se assustou com a transformação que tinha ocorrido com seu inimigo, parecia mais brabo, mais duro, mais corajoso. Bento teve até dúvidas de quem ganharia o duelo. C’uma das mãos tocou o cabo da faca.
Ele se aproximou do cabo Pires, este, por sua vez, ergueu a espingarda, mirando no inimigo. Bento Julião andou devargazinho, esperando o tiro. Cabo Pires tremia, suor lhe escorria pelo sobrolho, atrapalhava a visão.
Atirou. A bala passou arranhando a cara de Bento Julião que, primeiro pensou ter morrido, mas, ao perceber que tinha sido apenas de raspão, ele sacou a faca da bainha e avançou como uma onça.
Desesperado, cabo Pires tirou outro projétil da bolsa e tentava recarregar. A bala escorregou de seus dedos, catou outra, rapidinho, mas Bento Julião estava chegando perto, faca brilhando na mão e ódio saltando dos olhos. Cabo Pires enfiou a bala na culatra da arma, engatilhou e mirou. Mas Bento já estava a um palmo de distância, faca cravada até o punho no bucho do rival.
— Por que tanto ódio? — cabo Pires gemeu, perdendo as forças e caindo, olhos esbugalhados, fiozinho de sangue saindo da boca, estrebuchando igual porco no abate.
Bento Julião limpou o punhal na calça, se ajoelhou ao lado do moribundo, segurou a cabeça dele e lhe fez um cafuné nos cabelos.
— Todo mundo gosta de você, cabo Pires. Te odeio porque não posso ser igual.
E dizem até que ele chorava quando arrancou o coração do cabo Pires, como havia prometido.

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2 comentários:

Muito bom o conto! Narrativa envolvente, uma história bem real do Brasil interiorano. Abraços. Paz e bem.

Eu adoro este conto, desde quando foi apresentado na velha Oficina, ele realmente nos transporta e as imagens vão surgindo. Excelente.

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