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terça-feira, 11 de maio de 2010

A filha de Crisóstomo

Maria de Fátima
– Teresinha…
Assim chamou Crisóstomo Inácio encostado no balaústre da sacada como se fosse em amurada de um barco.
O pai a querer saber dela, a querer que não se afastasse, chamava-a sempre no diminutivo e, no entanto, se ela estava, quando na hora da ceia se encontravam à mesa, ou fosse qual fosse outra a circunstância, que não por saber por onde andava, mesmo daquela vez em que Maria Teresa teve as febres – dias, e foram mesmo meses, ardendo intermitente – era o pai erguido no seu metro e setenta e oito, magro, os dedos polegares enfiados nos bolsos do colete, a tratá-la como era o costume dele: a Maria Teresa sabe… a menina Teresa compreenda que…
E em término de conversa, tantas vezes: Maria Teresa, eu disse uma vez e basta.
E não havia apelo, como será quando Maria Teresa implorar: Paizinho, eu não posso prometer que nem mais uma letra, e não me mande para o convento.
E Crisóstomo Inácio, implacável: Maria Teresa, eu disse uma vez e faz-se.
Nunca tratava a filha pelo diminutivo.
E isso seria por Crisóstomo ser pai viúvo, que Dona Maria Isabel Benquista, sua amada esposa, se finara mal parida, que nem uma aguadilha Maria Teresa sugou de seu peito, Dona Maria Isabel com as miudezas infectadas e a menina baptizada no mesmo dia em que a terra recebeu os restos de sua mãe: Crisóstomo Inácio a rentabilizar a vinda do padre até à aldeia.
Tratava-a por Maria Teresa, ou Teresa, abreviando, a não ser que a chamasse, e era o caso nesse fim de manhã: Teresinha, tido ele dito, e a filha respondeu, saracoteando uma saia com folhos:
– Estou indo, meu pai.
Maria Teresa longe, saltitando ao longo do riacho, a responder de modo que nem a ouviriam, mesmo que tivessem essa faculdade, as pedras que pisava, quanto mais o pai lá longe, não tanto que, repetindo o chamado, ela não o ouvisse, duas fitas a dançarem nas abas largas do chapéu de palha, e ela respondendo, agora um tudo nada mais alto:
– Estou indo...
E ele sequioso que a filha viesse, clamava, repetindo:
– Teresinha…

A Crisóstomo ficara aquele medo de que Maria Teresa se fosse, que lhe tornasse aquela ideia. Que nem fora há muito, parecia-lhe a ele, Crisóstomo Inácio, e no entanto já Maria Teresa fizera a escola com a mestra, já estava na hora de decidir se a fazia casadoira ou a internava no colégio, as freiras a tratarem de saber-lhe fé suficiente para que professasse.
Mas o medo de Crisóstomo Inácio nem era que a filha repetisse o acto. O medo ainda maior, era que Maria Teresa um dia se desse em levar a publico aquela papelada, que escrevesse outras. Que ele nem contara, em segredo de confissão, quando o padre veio em visita de Páscoa. Vergonha que ele tivera de dizer que a filha tinha escritos, histórias, pensamentos, coisas que diria do demo, se bem que ela invocasse a Deus mesmo os parágrafos onde parecia discorrer dos sentires do corpo.
Uma coisa de loucos, pensava Crisóstomo, a viver no pecado daquele segredo, e a pedir que Deus lhe perdoasse se fosse caso de estar a levantar falso testemunho: que seria coisa do mafarrico aquilo que pressentia nos escritos da filha. Que na cabeça de Maria Teresa borbulhariam ideias desavindas.
Crisóstomo Inácio chamando:
– Teresinha…

***

Naquele Setembro, Maria Teresa sentara-se a olhar a água do regato debaixo do ulmeiro. Ela com os joelhos a tocarem a boca e os dedos enclavinhados uns nos outros em redor das pernitas magras, magicando.
Maria Teresa sem perceber que estava decidindo, num silêncio de segredo, o que seria a sua vida. Um arroubo, um desejo imenso que lhe cresceu de sair dali onde era a casa e, logo a seguir ao caminho, o povoado, e ela desejando mundo.
Era ainda quando andariam as meninas da sua idade a inventar brinquedos, mas, isso, Maria Teresa nem sabia.
Encontraria o jeito de ludibriar os que havia por perto: seu pai e Gertrudes, a rapariga que fazia a lida e lhe ouvia os contos: Gertrudes despercebida, que o tanto que seria atenta o era medrosa do que ouvia, folhas e mais folhas cheiinhas de rabiscos, que a menina lhe lia rogando: que o meu pai nunca desconfie.
Mas foi Gertrudes quem disse a Crisóstomo: a menina inventa coisas, e a mostrar ao pai o esconderijo dos papéis.
Mas isso foi só depois de Maria Teresa ter sumido, a subir o relevo do pequeno morro que abrigava as casas dos ventos de norte.
Um dia inteiro caminhando, e nem o som, que se ia esfumando – as vozes a chamarem-na – e nem a fome a demover Maria Teresa de buscar abrigo onde ficasse, onde fizesse descanso para depois ir um tanto mais longe: assim como se me comandassem vozes, dirá Maria Teresa quando contar de como foi galgando o monte, um dia e depois o outro.
Começaram por buscá-la pelo ribeiro, que o morro não era local de suas brincadeiras: não era costume. Andaram nisso os homens, a calcorrearem as margens de cá e de lá do fio de água. Poucos, que a aldeia era mais um sítio: seis casas, a de Crisóstomo Inácio um nadinha distante do aglomerado porque fosse a mais rica, porque fosse de herança.
Nada de alguém ter visto a menina, diziam uns e outros ao fim do primeiro dia, e repetiu-se até ao terceiro depois das Ave Marias.
Ao cair da noite, eram os homens com archotes, as luzes a formarem fila vasculhando, e depois a dispersarem-se na subida do pequeno serro, que semelhava íngreme. Fora o pai quem dissera:
– Tentaremos também daquele lado.
Vivalma.
Que na noite de lua em minguante, mal se enxergava além do redondo de luz que enviava o archote, ainda mais bruxuleando, que soprava vento de norte.
A cada compasso de espera que faziam, como se fora fim de busca, os homens ruminavam azedos a quem não sabe criar filha sem mãe que a eduque: que é preciso pulso forte e Crisóstomo é manso, ruminavam no temor de lhe ir dizendo.
E no entretanto de esperá-los, eram as mulheres a afirmarem o que até ali tinham calado, o que nem tinham dito a não ser na alcova, e agora conversavam de uma a outra: que aquela menina sofria de um mal, que a louca da casa a atacara.
As vizinhas a desabafarem o que traziam escondido: que seria de lhe ter cuidado, que a menina era dada a artes, que ela imaginava coisas. Que sim, sabe… diziam como se enregeladas de um medo de outro mundo, como se, propalando, exorcizassem o pavor de que viesse ter com elas o mal de que sofria a filha de Crisóstomo Inácio, um mal que raramente dava e atingira Maria Teresa, como já sofrera dele, contavam de uma a cada outra, a falar ainda mais baixo: a sua avó materna, Dona Aninhas, que Deus guarde no seu seio, também escrevia folhas e mais folhas de inventados.
E, como se contando de um pecado grave, de um mal que pega, persignavam-se a dizerem: a menina do Crisóstomo escreve, ela enche folhas.
Coisas do demo, rematavam, de novo a persignarem-se.
No entretanto em que a iam procurando, Maria Teresa nem rezava e nem adormecia, que a noite lhe trouxera o arrepio do medo a afugentar para um firmamento, que nem as estrelas alumiavam, a fé dela em Deus, e o desejo de mundo. Uns anos muito verdes enroscados sobre si, o vento a parecer falar-lhe, ora tonitruante, ora a soprar-lhe segredos, de um modo e outro, assustador. Maria Teresa dormitou mais de cansaço que de sono, tapada pela brisa quente, que era ainda sobras do ar de Verão aconchegando Setembro.
E ao dia seguinte, marchou-se adiante, que houve uma segunda noite antes que a encontrassem: Maria Teresa no cimo do morro e eles a rodearem-na.
E ao olharem-lhe os olhos, veio-lhes à mente o que cada um ouvira de sua mulher ou, em dia de ocasião, teria sido a menina Dores que fazia os serviços a solteiros e viúvos: podes crer, homem, a menina sofre, como hei-de dizer, do mal da louca da casa, uma enfermidade grave.
E foi de terem sabido pelas mulheres que, a descerem a encosta e a trazerem numa mula a filha de Crisóstomo, os homens se iam benzendo: em nome do Pai e do Espírito Santo, a ver se lhes fugia aquele calafrio de terem olhado os olhos transparentes de Maria Teresa como que a mostrarem mundos nunca deles sequer apercebidos.
E depois que desceram, diziam as mulheres, que assim tinham ouvido dos maridos: nem um choro, nem um pedir de perdão.
E faziam cruzes pela testa e pelo rosto, e dobravam-nas sobre o peito, como se assim fazendo, fossem sendo perdoadas de pecados que estivessem cometendo.
Foi nesse ínterim de buscarem-lhe a filha, que Crisóstomo soube que Maria Teresa era possuída do poder de inventar pela palavra, o poder de dizer o que nem lhe estava em roda, o que ninguém vira e só ela pensava.
Ficou Crisóstomo ciente que a louca da casa tomara em seus braços a filha.
Doença incurável.


***
– Chamou, Senhor meu pai?
E dizendo assim, Maria Teresa fez menção de uma vénia, a baloiçar os caracóis que soltara do chapéu de palha.
E Crisóstomo Inácio, a sentir o coração a dizer-lhe de outro modo, falava-lhe:
– Amanhã partes para o convento e não tornas.
Foi o início de uma estrada íngreme, a louca da casa imbuindo Maria Teresa, a ser-lhe alento e companhia para o resto dos seus dias.
E nas noites sem lua, ainda o povo da aldeia ouviria Crisóstomo Inácio:
– Teresinha…



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