Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sábado, 13 de março de 2010

O mergulho

José Guilherme Vereza

Que coragem que nada. Bastou Maria Neuza ouvir dizer da maior atração do novo parque de diversões da cidade, um bungee jump de 130 metros de altura, para despertar sua inquieta curiosidade pelo desconhecido. Decidiu pelo mergulho e pronto, ninguém precisou saber disso.
Foi num dia comum, logo que o parque abriu suas portas, entre dez e onze da manhã.Olhou a lonjura do topo da torre até doer o pescoço. Fez sinal da cruz, pegou o elevador - uma gaiola que subia rangendo e deixando a cidade em miniatura. Lá em cima, deixou-se amarrar. E nem pestanejou.
A primeira sensação foi o vento cortando o rosto, criando rugas e pregas com sobras de pele. Os olhos foram obrigados pela obviedade da física a ficarem bem fechados,o que impedia qualquer espiadela para ver o que estava acontecendo em volta. Tentou movimentar pernas e braços, mas percebeu que não tinha controle sobre nada.Era um crucifixo estático voando de cabeça para baixo. Enfim, o nada.
Os ares de uma liberdade jamais provada foram batendo no seu corpo, numa velocidade fria e vertical. Veio também a certeza plena e incontestável
de que não podia deixar escapar a única chance na vida de se sentir dona absoluta de si mesma.
E Maria Neuza viajou.
Primeiro foi à Europa, onde se entupiu de vinho, museus e perfumes. Depois, à África negra, quando as savanas e as hienas pareciam jardins e bichinhos de estimação. Achou chato. Partiu logo depois para a Oceania, aportou em Hong Kong,
deslumbrou-se com os néons de Tóquio, foi direto para Nova York, onde encheu sacolas e o saco de tanto passar cartão de crédito.
Cansou.
Preferiu sensações mais intimistas. Como por exemplo, a felicidade secreta de ser reconhecida, rica, famosa, respeitada. Experimentou também o aconchego de uma família amorosa, com a completude de um raro marido, filhos, empregada de forno e fogão,faxineira, passadeira, carro do ano na garagem e cachorro que não faz cocô no tapete. Dos filhos, deu pra ver bem as suas caras. Eram lindos, sadios e inteligentes. Os primeiros já eram adultos formados pela vida e pela melhor das universidades. A caçulinha, uma coisa linda e espevitada, olhos azuis e pele dourada preferiu outras trilhas: foi finalista no Big Brother e acabou posando nua na Playboy. Que se danem os vizinhos. Naqueles instantes intermináveis e vertiginosos,
Maria Neuza era senhora absoluta das suas opiniões, caprichos e desejos,e em nome deles mergulhou mais ainda.
Comeu pato assado com carambola, strogonoff de salsichão,bebeu vinho branco com picanha, cuspiu arroz trufado e pediu doce de abóbora de sobremesa.Mostrou a língua pro maitre metido a besta e arrotou.
Gostosos momentos.
Resolveu variar os sabores. Da mesa do restaurante granfino, saiu à cata dos meninos que não namorou nos tempos da escola e, mesmo podendo encontrar todos, preferiu um só, exatamente aquele de quem nunca tinha recebido ao menos um picolé.
E foi fundo. Urrou de gozar por todos os poros. Revisitou seus âmagos o mais que pode, tantas vezes quis.
Enjoou do rapaz, asco súbito. Pegou outro, mais outro e mais outro, tantos que enfileiravam-se aos seus pés. Recebeu flores de cada um deles, a cada dia seguinte. Experimentou o Kama Sutra em praias, poltronas de primeira classe de avião,últimas filas de cinemas, caçambas de roda gigante, bancos de fusquinha. E ainda inventou novas formas de amar e ser amada.
Quando se sentiu realizada e feliz, fez uma força imensa para abrir os olhos,
enfrentando o vento que castigava as bochechas, lhe comprimia os peitos, e eternizava um sorriso sincero e restaurador. Precisava espiar só um pouquinho o que de fato e de real se passava em sua volta.
Dos sonhos, restavam apenas alguns centímetros.
Nem teve tempo de sentir saudade.
Foi puxada subitamente para cima pelo feixe de elásticos e nylon, preso aos pés e à cintura. E como um iô-iô perdendo a sua força, lembrou que tinha esquecido a panela de feijão no fogo.
Talvez queimasse o almoço.
Talvez apanhasse do marido.

Share


José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


4 comentários:

Muito bom!
Eu imaginva um desfecho pior tipo do elástico arrebentando e ela morrendo... Mas foi melhor.. surpreendeu! Um megulho no desejos de uma dona decasa.
Parabéns!!

é em cheio destes contos que eu deliro: imaginação em dose dupla e desatino de cabeça, para além de uma escrita exímia para contar a coisa e aquele piquinho de cinismo e graça...

Puxa, quantos sonhos! Ela despencou do Himalaia, no mínimo. Só a fila de admiradores barrou a de Erendira. Belo exto, Zé.
Sua amiga Flavia Werneck.

Postar um comentário