José Guilherme Vereza
Tribiguá não é nada. Aliás, nunca foi coisa alguma. Mesmo em tempos de duvidosa prosperidade, quando ainda existiam algumas chácaras preguiçosas e gente em volta de uma estação de bonde, muito antes de ser carcomida pelo mau planejamento urbano que rompeu os limites da capital e da dignidade humana, Tribiguá só era reconhecida pelos seus próprios moradores na hora de preencher ficha. Nada que aquele passadouro infame, ponto de troca de mulas exaustas de puxar bondes, pudesse ser motivo de orgulho pátrio. Mas mesmo assim, ainda foi capaz de gerar uma história onde a vida tinha reles importância.
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- Esse menino não é de nada, Marieta. Culpa sua.
- Culpa minha, Jurandir? De onde ele tirou essa mania de não querer nada com a vida?
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Cantídio, de Marieta e Jurandir, tinha estranho interesse, que aflorou com o trágico esmigalhamento de Farrapo pelas patas de uma mula descontrolada, desengatada do seu bonde. Cantídio recolheu as sobras do vira-lata, jogou tudo dentro de um saco, cavou um buraco no quintal e procedeu a um rito funerário, muito menos por alguma afetividade pelo cachorro, muito mais por gosto pela celebração. A partir de então, cuidava da cova como quem zela por um jardim de crisântemos.
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Morreu D. Margarida. De tanto tossir seu coração desistiu. Tribiguá fez fila porta do sobrado. Cantídio dormiu na escada noite adentro, até que a família abriu as portas da sala para o velório. Como primeiro a chegar, apossou-se da cabeceira do esquife. Recusou croquetes, coxinhas, suco de groselha. Ficou horas de sentinela, a passear os olhos pelos restos magros de D. Margarida, por uma ótica inversa e curiosa, fitando a morta de cabeça para baixo, fixando-se no revoar das mosquinhas de banana sobre seu rosto pálido, sereno, inócuo. Quando a tampa do caixão decretou o fim da festa – da vida e do rega-bofe de D. Margarida – , Cantídio, teve, enfim, um arroubo. Coordenou como um maestro o aperto de cada tarraxa e organizou a disputa pelas alças.
- Na frente, os filhos, por favor. Genros e cunhados pelos lados e atrás.
E vida que segue.
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Salvo pelo interesse repentino pelos funerais de Farrapo, pouco se conhecia de alguma iniciativa normal ou gesto marcante de Cantídio, ao longo de seus 11 anos. Nunca foi visto jogando bola, roubando manga, saindo para comprar pão, essas coisas. Já nos tempos dos bondes elétricos, nunca se arriscou a pular num deles andando. Na escola era um mequetrefe. Aprendeu a ler, escrever, somar, subtrair, dividir e, com muito esforço, multiplicar. Sabia dos afluentes do Amazonas, das preposições acidentais e da gloriosa participação de Tribiguá na Guerra do Paraguai, na figura do ajudante de sapateiro Arlindo Ventura, cujo busto em plena praça disfarçava de herói um ordinário engraxate de botas de oficiais que voltavam dos charcos. Enfim, de matemática, linguagem, geografia e história, era tudo que Cantídio dominava. E mais nada. A conta do chá para levar a vida, sem vontade e sem presença. Mas diante de um corpo estendido, aí sim, revelava-se o barão das providências.
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- Raulino! Avisa para D. Juracy que o marido dela acabou de ser atropelado pela carroça leiteira. Bateu com a cabeça no dormente do bonde e até já parou de estrebuchar. Que traga velas e muita choradeira, como bem merece o coitado.
- Clementino!!!! Clementino!!!! Que fizeram com você?!, Clementino!!!
Chegou D. Juracy destrambelhada, atendendo ao alarmes de Cantídio, que não largou o defunto um minuto sequer. Cobriu-lhe de jornal e a viúva de abraços. Acendeu as velas, relatou o ocorrido aos entes, curiosos e transeuntes, e esperou até o sol raiar o furgão da delegacia levar Clementino para um bom banho e uma muda de roupa digna. Cantídio acompanhou tudo. Enrolou atadura na testa magoada, entrelaçou o terço nos dedos e deu nó na gravata. Meio troncho, mas para o que servia, servia. Comandou os funerais com a desenvoltura de um papa-defunto de alta patente, mas diante da estupidez da morte, ninguém teria a sensibilidade para perceber que ali, bem ali, atrás de um menino esquálido, cara de idiota entre duas orelhas de abano, se escondia uma vocação, um talento, um prodígio. À última pá de cal, à dispersão dos suspiros e soluços, Cantídio retornava à sua pasmaceira.
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Esparramado na rede da varanda, olhos atentos ao nada de uma madrugada sem lua, Cantídio mal ouviu palmas no portão.
- Ô menino... levanta daí. É com tu mesmo com que quero falar.
- É comigo? A essa hora?
- É menino! Preciso que venhas logo!
Nunca na vida Cantídio tinha ouvido que alguém pudesse estar precisando dele. Por isso demorou mais um tanto para se desvencilhar do cordame da rede e se colocar de pé, a ponto de enxergar ao longe um vulto magro e aflito.
- Sou eu, Cantídio! O professor Bonaparte!
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Bonaparte de Alves Gusmão, diretor do Grupo Escolar, sujeito estranho de vestes soturnas, poucos sorrisos e cavanhaque de bode, que com olhares rígidos governava anos a fio a disciplina das crianças de Tribiguá. Mais zeloso por condutas do que por ensinamentos, o Professor Bonaparte tinha tanta influência nas famílias quanto o pároco, o delegado e o boticário. No entanto, sua existência era um mistério e poucos arriscavam especular sobre suas intimidades. Não era casado. Não tinha filhos. Não tinha parente. Não se sabia de criados na sua casa, tida como mal-assombrada e de maus agouros. Nunca foi visto num sábado, domingo ou feriados a zanzar pelas ruas. O que emergia da sua vida era a dedicação plena aos afazeres de professor. De casa para escola, da escola para a casa, com algumas raras aparições em almoços ou jantares oferecidos por mães bajuladoras, que precisavam se orientar diante de um ou outro problema dos filhos. Bonaparte ouvia atento as mais variadas lamúrias, mas na hora do cafezinho, barriga cheia e alma restaurada, a conclusão era sempre a mesma:
- São crianças, minha senhora. É por isso que temos que estar de olhos em alerta aos desvios da mocidade.
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- Preciso que tu me acompanhe à minha casa, Cantídio.
- Na casa mal assombrada, professor?
- Poupe-me de tuas asneiras, menino. É uma casa sóbria, como convém a um templo de conhecimento sabedoria...
- Agora?
- Agora! Enquanto Tribiguá dorme...
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No rastro do professor, trilhando o caminho do bonde, Cantídio seguiu em silêncio e curioso. Perguntava a si mesmo por que teria sido escolhido para desvendar os mistérios que habitavam atrás das grades pesadas, da porta de madeira escura e dos janelões indevassáveis. Ao chegar ao portão, tremia. Não pela brisa da madrugada, mas de excitação. Bonaparte abriu o cadeado e num gesto cordial ofereceu entrada para o menino, que pé ante pé, penetrou sem medo, mas com alguma taquicardia. Seus olhos vasculhavam cada detalhe, mas casa não era diferente do que imaginava. Viu móveis empoeirados, livros e mais livros espalhados pelo chão, quadros velhos e belas artes em teias de aranha. Um sofá manchado pelo tempo diante de uma escrivaninha com um globo terrestre foi o lugar onde Cantídio escolheu para se sentar, tão logo o professor lhe dissera para ficar à vontade. E tudo começou a ficar claro.
- Não te preocupe, menino, vou ser breve, pois tão logo o primeiro bonde vai passar. Não temos muito tempo.
Cantídio se aprumou no sofá, diante do velho de pé, por trás da escrivaninha. Nada disse, só queria descobrir o rumo da prosa.
- Meu filho, como imaginavas, sou um homem sábio e solitário. Tudo que aprendi na vida e nos educandários de nada serviu para esta póvoa inútil em que vivemos. As pessoas obtusas e refratárias que habitam Tribiguá não me inspiraram a constituir uma família e dar prosseguimento à minha linhagem. Nunca houve formosura entre nossas moças. Nunca houve verve em nossas crianças. A escola é povoada de idiotas como tu, que pouco aprendem e muito trabalho dão aos pobres pais. Não, não estou falando de tuas traquinagens, pois até para isso és incompetente. O trabalho que dás é a pasmaceira em que vives. És símbolo da mediocridade de Tribiguá, com uma ligeira diferença a teu favor. E como tal, tenho cá uma oferta.
Cantídio acompanhou a mão de o velho abrir uma gaveta e de lá tirar um papel com letras rebuscadas.
- Eis meu testamento. Ficam para você este casarão, incontáveis livros, móveis que estão entre o lixo e uma restauração, quadros sem valor e 15 cabeças de gado, confinados num curral a três estações daqui. Todos os animais têm um B de Bonaparte marcado a fogo no dorso esquerdo. São teus.
O menino, então, conseguiu se manifestar.
- Mas por que eu, professor?
- Como disse, Cantídio, sou sábio e observador. Sei de teu fascínio pela morte. Esta é a tua personalidade. E como tal, trate de cultivá-la. E pela rara coragem de ser tão peculiar, te faço duas ofertas. Uma aqui está na minha mão, meu testamento.
- E a outra, professor?
- Um momento, menino.
O velho abre outra gaveta e retira uma garrucha semi enferrujada. Enfia o cano pela própria boca e explode os miolos. Cantídio levanta do sofá. Permanece estático, embevecido, enfeitiçado por aquela sangueira sobre a escrivaninha. O globo terrestre rola pelo chão, como se fugisse em direção a porta. O menino entende tudo. Jamais a vida havia lhe oferecido um presente tão magnífico: assistir ao exato momento da morte não era homenagem que se prestasse a qualquer um. Orgulhoso e eufórico, Cantídio sai em disparada pelos trilhos. Com muita pressa. O primeiro bonde da manhã já deveria estar a caminho.
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Os funerais do Professor Bonaparte foram concorridos. Crianças do Grupo Escolar entoaram cantigas de adeus num coral pouco afeito a harmonias e afinações. Mães órfãs de seu conselheiro deram se as mãos e Cantídio, com sua voz frágil e aflautada, puxou um pai-nosso-que-estás-nos-céus de transbordar os olhos da cidade. O padre abençoou a urna prudentemente lacrada, pois a cabeça do professor tinha se transformado numa maçaroca de causar engulhos e pavores. O delegado discursou pela alma do suicida. E o menino sorriu por dentro. Além da gloriosa cena em sua memória, tinha agora um casarão, alguns livros e 15 vacas a contabilizar.
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Tribiguá não é nada. Aliás, nunca foi coisa alguma. Imagine que os infelizes daquele passadouro, curral de mulas e gente de maus bofes, espalharam que Cantídio teria matado o professor só pra ficar com a herança. O menino deprimiu de vez. Nem arrumou as trouxas. Pegou o bonde da madrugada, foi até o fim da linha e sumiu na escuridão da mata, deixando pai, mãe, parentes, escola, o casarão, quadros velhos, incontáveis livros, 15 reses e a vida para trás.
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Nunca mais se ouviu falar de Cantídio. Diz a lenda que foi parar no cemitério municipal, onde sua alma vaga, entre mausoléus, sepulturas abertas e restos de gente expostos. Até hoje, não há velório em Tribiguá que não se ouça uma voz de menino, frágil e aflautada, puxar um pai-nosso-que-estás-no-céu. Não se sabe de onde vem nem como acontece. Mas é sempre a mesma voz, de explodir suspiros e transbordar os olhos da cidade.
domingo, 13 de setembro de 2009
O menino de Tribiguá
por José Guilherme Vereza
1 comentário
1 comentários:
ZéGui, muito bacana o espaço.
Andei olhando os perfis, e fiquei com a impressão que você está muito bem acompanhado. E legal os números específicos para cada escritor.
E grande conto! Tribiguá não merecia o menino Cantídio, com o seu fascínio pela morte.
E gostei pacas de ver lá no seu perfil o "tijucano" sem o "ex".
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