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sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Margarida (ou seria Helena ou Graça )

Maria de Fátima Santos

Dez horas
Fim de tarde
Chuvisco de começo de Outubro
Um ventinho quase frio e ela sem nem um casaco que lhe cubra o decote em bico que deixa ver os seios bronzeados, presos num sutiã de algodão com flores
Espera pelo autocarro – o doze que a deixará, como costume, em frente da pastelaria Pingo de Mel
Daí até ao apartamento, onde vive sozinha, são duzentos metros por um passeio de paralelepípedos cinzentos
Depois é a subida no elevador pachorrento: quatro pisos
Margarida (ou seria Helena ou Graça) mora no quinto andar de um prédio de renda económica nos arrabaldes da cidade
O prédio é pintado de verde alface e tem bandas rosa choque em cada um dos andares – catorze, ao todo
Margarida (ou seria Helena ou Graça) olha mais uma vez a rua no sentido que é suposto que surja o transporte, e encalha com os olhos de um rapaz, assim mais ou menos para sua idade, que cora e se apressa a poisar os olhos na pasta de couro preta que tem a tiracolo - um computador portátil, parece-lhe, e ela pensa: deve ser estudante de belas artes - e isso porque há uma escola, ali, depois do cruzamento; e, enquanto cogita sobre a mala, admira o ar frágil e doce do corpo do moço que veste um casaco de malha, o que ela inveja pois sente o ar fresquinho arrepiar-lhe os pelos dos braços e das pernas que traz destapados num vestido leve


Chega o autocarro
Sobem, uma a uma, as dez pessoas que estão na fila, em que ela é segunda, e o rapaz vai no fim, a seguir a uma mulher que leva ao colo um gato e não sobe porque, deve ser o que lhe diz o motorista debruçado para a porta, é proibido transportar animais sem que seja em gaiola; e a mulher aconchega o animal e desvia-se para deixar passar o ultimo da fila – o rapaz da mala de couro
Dentro do autocarro, Margarida (ou seria Helena ou Graça) vai sentada junto a uma janela ao lado de uma senhora idosa a quem disse: desculpe, antes de se sentar
O rapaz, com a pasta a encalhar em uns e outros, fica de pé junto ao banco onde está sentada Margarida (ou seria Helena ou Graça), que entretanto já fechou os olhos - ela nunca o quer, mas como de costume, vai adormecer
São muitas paragens, cerca de três quartos de hora de viagem

Três horas da madrugada
Ouve-se o barulho da chuva a bater no vidro da janela
Margarida (ou seria Helena ou Graça) acorda deitada numa cama

Não é o quarto dela - constata pelo cheiro e pela posição em que ouve o ruido da água: que grande carga de água, pensa ela, tentando ver, mas está demasiado escuro
Sente a seu lado um corpo que lhe toca o braço esquerdo com uma pele morna e lisa
Margarida (ou seria Helena ou Graça), totalmente nua, tenta recordar-se
Mas ela só se lembra de ter entrado no doze e ter fechado os olhos - terá adormecido, como era seu costume: e depois? que foi que aconteceu hoje?!
Ah!
Lembra-se do moço que entrou por último no autocarro - o mesmo que corara na paragem e trazia a tiracolo uma pasta de couro
Não tem mais nada em memória
O corpo mexe-se - a cama balança com o que será uma pessoa sentando-se na beirinha
Uma voz roufenha brama entre dentes
-Porra! Adormeci

É voz de homem - terá pensado ela ou nem teria tido duvida

Quem o sabe
Margarida (ou seria Helena ou Graça) percebe que, quem quer que seja, se veste, aos pés da cama

Faz um esforço para se mexer, para dizer alguma coisa - nem uma fímbria do seu corpo obedece

Adapta os olhos ao escuro, e percebe a pasta entreaberta
Diz de si para consigo: afinal não é um computador o que tem dentro


Mas não se irá aperceber, que o moço sai correndo pela escada com a pasta a tiracolo

Não saberá que ele leva na pasta um frasco transparente

Nem haverá quem lhe conte que, aconchegado como o gato que não seguiu no doze, embebido em conservantes, vai descer os cinco andares, apartar-se para longe, o coração, ainda pulsante, de Margarida ou seria Helena ou Graça

(ou Josefina ou Engrácia, Fielpina, Beatriz, Dolores ou Maria das Dores)


Sobre a autora
Maria de Fátima Santos nasceu em Lagos, Algarve, mas tem Angola, onde viveu a adolescência, como a sua mãe-terra. Licen-ciada em Física tem sido professora de Física e Quí-mica. Com poemas em vários livros, em co-autoria, é às pequenas histórias, que lhe voam no teclado, que chama “meus contos”. O blog Repensando (www.intervalos.blogspot.com ) tem sido seu parceiro e motivador na escrita dos últimos anos. Escreve pelo gosto de deixar que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

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