por Wellington Souza
Tal meus pais sou um homem triste. Se sou um homem, não sei, tento ao menos transparecer um... Não que tenha problemas com minha sexualidade, não. É que já estou beirando os trinta anos e ainda tenho uma dependência umbilical – apesar de ter apenas o pai vivo – e isto não põe à prova as virtudes que um homem tem de ter para se dizer um.
O desalento é hereditário em nossa família, tanto na materna quanto paterna, mas o suicídio apenas na materna. Os mais velhos dizem que, ao nascermos, mal choramos ante as palmadas do médico, que têm de vir no plural mesmo, senão não surtem o efeito esperado. Não reclamamos o colo das mães, não rejeitamos as enfermeiras, de toda forma, ou quase toda, está bom. Demoramos a abrir os olhos, e quando abrimos já os temos baixos, longe, como que olhando com desdém o mundo já na primeira espiada. E carregamos este desânimo pelo resto da infância, adolescência até a maturidade, como que subindo.
Meu pai era médico e morávamos na mansão herdada do meu bisavô. Como médico me presta consulta e a todos os seus parentes, que se dirigem a ele apenas por convenção familiar – ele mal nos olha, nos pergunta. Não cheguei a conhecer a sua personalidade, nos sentávamos juntos à mesa somente no almoço dominical, após isso ele se recolhia à biblioteca e por lá ficava. Isso antes da mamãe se ir, depois nem isso fazia, ficava recluso, em um auto-exílio. Gostava de apreciar uísque.
Tenho um irmão, mas dele falarei mais tarde.
Quanto a mim, tento combater meu egoísmo com esmolas. As capitalizadas ajudam momentaneamente; prefiro estas, pois o pedinte, em meio a tantos que o ajudam, nos esquece facilmente a ponto de nos parar na volta. Esse altruísmo na verdade é a mim que faço, pois me sinto menos culpado e mais atuante, um pouco mais de vida, só um pouco. Costumo praticar também doando tempo, ouvidos. Sempre que converso com pessoas acabo mais ouvindo queixas do que falando, geralmente reclamam das reações que suas ações irracionais ou mal-arquitetadas as impelem – mesmo quando as pago para estarem junto a mim. Dôo tempo, mas vou para longe, fumo um charuto na fazenda vendo o caseiro matar frango-caipira, sirvo-me de chave para que as pessoas se abram e deixem seus monstros saírem, enquanto correm os vinte minutos que não foram aproveitados para assim cumprir com o acordado e previamente pago. Ao entrar por essas portas me liberto também, vivo essas estórias ao meu modo, e percebo que essa minha privação do mundo é o próprio conceito de morte, é abiótica, é fome crônica.
Combater o egoísmo é mais fácil que combater o egocentrismo. Por saber do universo das possibilidades, acho mais interessante conhecer as escolhas e as possibilidades dos outro que fazer as minhas próprias e arcar com elas. Como um deus, não tenho vida. Cuido e analiso as dos outros como que num laboratório. As pessoas que não se preocupam com dinheiro acabam se apegando a cada trivialidade… sou um exemplo. Faço isso porque quero saber o que levou mamãe a sucumbir em si mesma, quais motivos impelem pessoas para esse caminho, quais desesperos. E é ai onde entra o meu irmão.
Hoje ele estuda em outra cidade, também trabalha, e me parece estar noivo. Saiu daqui para estudar engenharia, mas como pretexto. O ambiente fúnebre que nos cercava não o deixava à vontade, e quando mamãe se foi ele quis ir para um internato na Escócia. Voltou para o país e já se mudou para a capital, foi continuar os estudos lá. É bem diferente de nós, ele, é alegre, tem os olhos escuros como jabuticabas que colhem na fazenda. É comunicativo, desde criança todos já notaram e, às suas formas, estranharam.
Acho que ele não é filho do meu pai. Até há pouco tempo não sabia por que minha mãe não fugiu com o pai dele e foi feliz, enfim. Seria um escândalo em nossa cidade, onde o casamento dos meus pais unificou o aglomerado de clinicas da região e o divórcio poderia por fim à sociedade, o que teoricamente a levou a fazer isso. Um ato muito heróico, a meu ver, uma mulher apaixonada tirar a própria vida pois ir viver com seu amor acarretaria prejuízos financeiros e morais à sua família. As pessoas que vêem o amor como um fim, soçobram. Ele tem de ser um meio para um bem maior. Não estou falando que não se deva amar outra pessoa, sim, ama-se, mas depois paga-se e se vai para casa. Fora isso, tem que se amar uma vida, um plano, um status; achar outra pessoa que ame o mesmo mundo, então se apaixonar e furar um olho para não se enxergar tudo. Mamãe tinha os dois olhos vivos, e não suportou viver assim.
Ela bebeu inseticida na fazenda dos meus avôs, seus pais. Mas seu caixão fora velado fechado, dizem que para proteger meu irmão, pois o veneno deformara o rosto pálido. Era professora de língua inglesa e tocava piano contra sua vontade, sempre, na casa da vovó. “Amo todas as peças ao seu lado”, disse-me ela certa vez com excessiva espontaneidade, “mas este jogo de xadrez é uma tortura”. Nesse tempo eu já era jovem o suficiente para saber que ela não contava com papai ao seu lado, mas não compreendia que se apaixonara pelo rei-negro. Ela lecionava em uma cidade vizinha, para onde viajava uma vez por semana e pernoitava.
Sua depressão derradeira começou quando essas aulas foram interrompidas. Chorou uma semana seguida e nunca se recuperou. Durou um mês, até que, após uma discussão com meu pai (tinha-os visto discutir apenas uma vez antes desta), fez uma pequena bala, nos deu um beijo e avisou que dormiria na casa da vovó. Na noite seguinte ligaram de lá, e meu pai saiu de casa às pressas. Na manhã, mandaram-nos descer para o café da manhã de terno. À mesa meu pai deu a notícia, pediu para que, se fossemos chorar, para subirmos aos quartos e não mancharmos as roupas. Tínhamos 16 e 14 anos, eu sendo mais velho. Subi ao meu quarto mais logo desci, meu irmão mandou avisar que iria apenas à noite, já para o velório. Meu pai nunca se opôs às nossas vontades, hipocondríaco, escutava com olhar longínquo.
De certo modo, são engraçadas as estórias familiares, as comédias familiares, ou anti-familiares, se o meu intuito aqui fosse formular um conceito tecnicamente. Que grande farsa não seria estas estórias, utilizo-me do termo teatral exatamente para expor tudo o que há de encenação épica desde o correr de águas cotidiano até quando elas se dividem.
O enterro ocorreu. Meu irmão viajou para o seu internato. Voltou e está na capital. Por esses tempos recebi uma carta anônima. Resumidamente contava que minha mãe não morrera naquela época, que meu irmão não fora a internato algum, e sim viver com ela e seu pai em Londres (o pai dele viajou para lá e ela o seguira). Argumentava que ela exigiu, com instinto animal, levar nós dois, mas foi obrigada a escolher um e deixar o outro para perpetuar a família. E que agora estava em estado terminal de câncer, na capital, onde vive com meu irmão, pois pouco tempo depois o pai dele os abandonou.
O erro do meu pai foi ter tido filhos. Homens como ele não podem ser responsáveis em preparar a terra para a outra semente, pois ela não crescerá. No mundo animal, ele não sobreviveria. Não fossem meus avós arquitetarem o casamento, ou melhor, o negócio, ele estaria em seu consultório se masturbando até hoje ou já teria desenvolvido alguma patologia psicológica que o faria perder a vida precocemente. De homens com esse caráter, só poderia sair gente com o meu caráter, é como o capital, ou um pouco menos determinista. E ainda põe-se a culpa na genética. Por isso também dou esmolas: sei o que é ter carências, sempre tive pão, mas nunca alguém que me alimentasse.
Rasguei a carta. Não fui querer saber. É mais confortável continuar debruçado na minha realidade, não sei como meu organismo suportaria mudar de mundo assim, bruscamente. Mudar de gravidade. Além do mais, agora, não faz a mínima diferença ela ter morrido há quinze anos ou morrer daqui a um.
domingo, 6 de setembro de 2009
Hereditário
por well souza
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