Antonio Luiz M. C. Costa
O anoitecer foi tranqüilo. Nix, a rainha da Noite, não trouxe as ninfas da chuva, mas apenas as Brisas que amadurecem os frutos, filhas do suave Zéfiro. No entanto, quando Eos afastou a escuridão com os dedos rosados e abriu caminho para Hélios iluminar as terras férteis da Tessália e Macedônia, raios e estrondos agitaram o alto Olimpo sem parar, sob um Éter azul e esplendoroso. Pastores, camponeses, mercadores e sacerdotes, terrificados, correram aos templos a tentar aplacar com holocaustos a fúria do pai dos deuses e dos homens.
No cume, a ansiedade não era menor do que nos vales. Serenadas as paixões despertadas pela guerra de Troia, Harmonia fora por séculos a mestra de cerimônias do Olimpo. Mas, naquele dia, Ênio e Éris excitavam os imortais sem encontrar quem as calasse. A discreta e obscura Icnaia ouvia a um canto, silente como as tias, a inescapável Nêmesis e a reverenda Têmis. O senhor supremo a todos convocara e, naquele momento, tomava assento no mais alto dos tronos. Dos habitantes do Olimpo, apenas Héracles faltava, notou Icnaia, certamente encarregado de alguma missão, pois seria o último a desacatar uma ordem do pai.
Desaparecera do tesouro do Rei dos Deuses a égide sacra e imortal, de preço infinito, da qual pendiam cem franjas, trabalho de fino traçado, de ouro sem mescla, valendo, cada uma, segundo Homero, o que valem cem bois. A égide que ao próprio raio de Zeus resistiria, coisa espantosa de ver, ornada pelo frio Terror, pela horrenda Derrota e pela cabeça da Górgona, terrível espetáculo.
Com torvo aspecto, proclamou Zeus grande, que as nuvens cumula:
– Ai do leviano que despertou minha ira por tanto tempo adormecida! Humano ou divino, o farei invejar os tormentos impostos ao infame Íxion! Se ao rebelde Prometeu impus uma águia impiedosa para lhe devorar o fígado todos os dias, a este ladrão hei de punir todos os parentes vivos e mortos e fazer a mais cruel das serpentes roê-lo por dentro, do baixo ventre ao alto do crânio, a cada noite e cada dia de cada século do eterno tempo! Quanto ao imortal cujos atos ou negligência o tenham ajudado...
Hera, a cruzar os cândidos braços, explodiu, sem conter o rancor:
– Zeus prepotente, de Cronos nascido, que coisa disseste? Estás prestes a fazer um juramento do qual podes te arrepender! Antes de outro olímpico, é a ti mesmo que deves censurar! Meu fiel Argos Panoptes, o mais fiel e atento dos guardiães, teria impedido o furto, não fizesses teu solerte Hermes matá-lo para libertar a vaca tua amante, minha perjura sacerdotisa Io! E sabes acaso se não foi uma imprudência de um dos teus queridos descendentes, que à minha revelia espalhas pelo mundo?
O Trovejante franziu o cenho ao fitar a esposa, vezeira em se opor ao tudo que planejava, mas não manifestou a extensão de sua fúria. Devia perceber o que havia de mérito naquelas palavras e no imo do peito consultava Métis, a Prudência. Icnaia começava a sentir-se aliviada quando o deus augusto voltou-se para os demais e proferiu um discurso:
– Atenção prestai todos ao que vos digo! Nenhum dos deuses, nem mesmo nenhuma das deusas se atreva a contestar meu discurso, mas, todos, concordes se mostrem! Quem puser empecilhos à investigação deste sacrilégio ou à punição dos culpados, há de se ver aqui açoitado, do modo mais vergonhoso, se eu o não lançar no Tártaro escuro. Hão de ver quanto sou, mais que todos, potente. Quereis me pôr à prova? Dai-me uma ponta de longa e áurea cadeia e, da outra, reunidos, ó deuses e deusas, forçai-a para baixo. Por mais esforço que apliqueis, impossível vos será arrastar do alto ao grande Zeus. Mas, se eu quiser, trarei a própria terra e o mar vasto junto convosco e ser-me-á fácil, no alto do Olimpo, amarrar-vos nessa corrente e dependurá-los no abismo, tanto vos supero!
Assim como os demais olímicos, estupefata e queda ficou Icnaia, perante a violência dessas palavras. Uma eternidade pareceu se passar antes de Atena, a indomável donzela de olhos glaucos, por fim adiantar-se para falar. Seu peito transbordava de raiva selvagem contra Zeus pai, suspeitava Icnaia, mas suas palavras foram mansas:
– Filho de Cronos, pai de nós todos, senhor poderoso e supremo, sabemos que força invencível possuis. Basta-nos vê-la unir-se à firme retidão de Têmis, a Lei Eterna.
Respondeu-lhe o pai, de ânimo menos tempestuoso:
– Tritogênia, tranquiliza-te; quanto falei, foi produto, decerto, da cólera; mas para ti quero ser mais sereno. Ouvirei, decerto, a deusa do reto conselho.
A julgar pela expressão, pensou a deusa obscura, Hera não a ouvia de bom grado. Inevitável era seu ciúme ante qualquer das imortais que um dia atraíram o desejo do marido inconstante, antes mesmo dele a escolher como sétima e, supunha-se, definitiva esposa. Mas com certeza ela reconhecia a sabedoria das palavras da enteada. Conteve a língua ferina enquanto Zeus se dirigia àquela que fora sua segunda companheira e o fizera pai das Horas serenas e das Moiras inflexíveis.
Ao chamado do soberano, a Senhora da Justiça aproximou-se e ouviu seu soberano:
– Jura-me, então, pelas águas do Estige funesto, uma das mãos encostando na terra que nutre os viventes, e a outra no mar cintilante, para que testemunha nos sejam as deidades subterrâneas de que me prometes de tudo fazer para entregar o culpado à justa punição!
Consumado o voto sagrado, Têmis aproximou-se da sobrinha e da prima, com o semblante carregado:
– Minhas caras, conto convosco para dar a mais rápida resposta possível a esta afronta. Nosso soberano confia em mim para restabelecer a ordem sem graves injustiças, mas necessito da astúcia de Icnaia, a rastreadora, para identificar os culpados e da firmeza de Nêmesis, a vingadora, para encontrá-los e trazê-los a julgamento. Deveis saber que a égide desapareceu entre a manhã de ontem, quando Atena, após socorrer os helenos em uma batalha contra os bárbaros, a devolveu ao pai para que a guardasse e a madrugada de hoje, quando Zeus a procurou, pretendendo usá-la para inspecionar o Tártaro.
As duas temíveis deusas assentiram ao pesado encargo. Têmis ia desejar-lhes boa sorte, mas num átimo surgiu, a deslizar sobre sua roda, Tique de pés ágeis e oblíquo sorriso:
– Tia, sabes como ninguém quão essencial é à Ordem Cósmica que o Acaso não lhe seja submisso. Não me peça favores, apenas imparcialidade. Meus dados tanto podem favorecer a ti tanto quanto às tuas presas. Contenta-te com que não sejam viciados.
– Assim seja – Têmis suspirou e despediu-se de Icnaia e Nêmesis.
O deus-pai desceu do sólio divino e retirou-se em silêncio, após encerrar a reunião com um gesto brusco. As duas imortais afastaram-se, pensativas. Icnaia foi a primeira a falar:
– Tia, ao saber do desastre, consultei meu pai, pois à luz do dia ele tudo vê se Zeus não o proibir. Mesmo sem eu lhe pedir ele jurou-me, pelo odioso Estige, nada saber. Se o furto se deu quando Hélios já se recolhera, não poderá tua mãe Nix nos... – ia dizer esclarecer, mas conteve a tempo a palavra impensada – ... ajudar a destrinçar esse mistério?
– Não, Icnaia. Desde que a rainha da Noite voou em socorro de meu irmão, que Zeus queria atirar do Éter às ondas por tê-lo adormecido para permitir a Hera armar uma artimanha, minha mãe exige um pedido de desculpas do senhor do Olimpo antes de lhe atender qualquer solicitação. Embora Zeus refreasse contra Hipnos a cólera imensa, pelo receio de à rápida Nix desagradar, o orgulho de ambos torna a reconciliação impossível.
– Tentemos então um oráculo. Prefiro não consultar Apolo, as Titânides ou Prometeu, pois ainda não os excluo do rol dos suspeitos, nem ouso exigir-lhes jurar pelo Estige sem um indício concreto de sua culpa, mas podemos recorrer a meu tio Astreu. Na noite do furto, estive com ele, meus pais e minhas tias Eos e Selene a festejar a Lua Nova. Posso assim isentá-lo de qualquer desconfiança.
– Infelizmente, só posso acrescentar à lista dos insuspeitos nossa cara Tique, cujo rastro segui por toda a noite, a tentar corrigir seus excessos. Consultemos, pois, teu tio.
***
Ao vê-las chegar, Eósforo as anunciou ao velho titã, que para saudá-las largou o compasso e o esquadro com o qual determinava o curso das estrelas. Os ventos, seus filhos, deram boas-vindas às duas deusas aladas. Euro encheu de néctar os copos de ouro maciço, para todos trocarem brindes corteses, Notos trouxe um jarro de água fresca, Bóreas serviu ambrosia à mesa e Zéfiro tocou sua flauta para Eósforo dançar e assim alegrarem o desjejum do pai e de suas convidadas.
Icnaia estava, porém, preocupada demais para divertir-se. Provou a ambrosia para não fazer desfeita ao tio, mas quase de imediato o inquiriu sobre o nefasto desaparecimento. O velho não se recusou. Perguntou sobre as minúcias do dia e hora na qual a égide fora feita do couro da sagrada Amalteia, fez uma rápida conta nos dedos e chamou o sobrinho Héspero, que lhe trouxe uma esfera redonda e giratória à imagem do universo. Astreu girou cuidadosamente a esfera sobre seu eixo, carregando planetas e estrelas em torno do eixo. Icnaia notou como Hélios e Selene reuniam-se em um ponto central debaixo de Gaia, mas não compreendeu o que mais o tio examinava em torno do círculo do zodíaco.
Quando se satisfez com a observação do circuito das estrelas, Astreu pousou a esfera sobre a mesa, voltou-se para as deusas e emitiu seu oráculo:
– Ouve, severa Nêmesis, está atenta, sagaz Icnaia! Quando os raios da lua e do sol se ocultaram sob a Terra, uma antiga divindade com motivos para se sentir agravada por Zeus Trovejante encontrou a oportunidade para furtar-lhe seu bem mais precioso, pois nessa noite a Parte da Pobreza completou um ciclo de muitos séculos e reencontrou a estrela do rei dos deuses sobre o Capricórnio, junto à Parte da Ousadia. A autora da rapina não quer a égide para si, mas para um jovem imortal pronto a vingá-la e tomar o trono do Olimpo, a menos que as linhas das Moiras possam ser rompidas. A Parte ressentida por primeva ofensa desloca-se, veloz, para encontrar em Virgem a estrela de Cronos na casa das Crianças, pressagiando um novo reino celestial.
Ao ouvir essas palavras, Icnaia tremeu e sentiu-se gelar e faltar-lhe o icor ao rosto. Olhou para expressão dura e impenetrável de Nêmesis. Decerto estava igualmente chocada, mas expressar cólera não era de seu feitio, conhecida que era por retribuir à insolência e à húbris de maneira tão implacável quanto imprevista e silenciosa. Voltou-se para o tio:
– Sábio Astreu, não podes nos dizer algo mais sobre o sacrílego ou o usurpador? Seus motivos, seus meios, seus modos de agir? Qualquer indício que possas acrescentar pode ser a diferença entre a salvação e a perdição do Olimpo!
Astreu cofiou a longa barba branca, considerando com cuidado a esfera:
– O encontro anterior da Parte com a estrela de Zeus deu-se na Casa da Morte, em conjunção com uma Virgem debilitada pela estrela de Ares, o raptor de mulheres, um ano após a morte do maior dos heróis, quarenta e dois anos antes de os aqueus sitiarem Troia. Relaciono a antiga mágoa à violação de uma virgem pelo Trovejante.
– Tio! – Exclamou Icnaia – Seria o tempo da concepção de Helena, Clitemnestra e os Dióscuros. Mas Leda não era virgem e sim esposa de Tíndaro!
– Não há como dar mais pormenores, mas é o parecer do oráculo. Quanto ao usurpador, seu caminho iniciou-se em Aquário à luz da conjunção da estrela de Zeus com seu próprio Ascendente no eclipse solar da quadragésima-quarta Olimpíada... – disse, a contar nos dedos. – Um descendente do próprio rei dos deuses!
– Há menos de dezoito anos! Mas se sabe de filhos gerados por Zeus depois de Kairos, nem de qualquer olímpico nascido após os Heráclidas invadirem o Peloponeso!
– Também não sei a quem as estrelas se referem. Mas a ocasião propícia ao golpe do usurpador é a lua nova, quando haverá outro eclipse total do Sol perto do crepúsculo. Na sétima casa, a da esposa e das parcerias.
Era tudo. Não se consultava oráculos duas vezes sobre a mesma questão. A deusa deixou, cabisbaixa e pensativa, a audiência. De esguelha, viu a expressão dura e impassível de vingadora obstinada, feroz mastim ansioso por sangue. Mas precisava do sabujo para lhe rastrear e apontar a presa e Icnaia jamais sentira o faro tão embotado. Tinha de ser na pior crise desde a rebelião de Tífon! Se não solucionasse o mistério a tempo, acabaria no Tártaro. Ou o usurpador a puniria pelos séculos de fiéis serviços ao Trovejante ou este a condenaria por inépcia, caso vencesse apesar do seu fracasso.
– Tia – disse Icnaia –, preciso investigar os fatos com calma e sozinha poderei fazê-lo com mais discrição. Convém, creio, nos separarmos até eu encontrar uma pista.
– Como queira, minha sobrinha – disse Nêmesis, insondável. – Confio em teu julgamento.
***
Icnaia foi à sala do tesouro, em busca de ideias. Hefestos ajustava à porta a tranca adamantina que acabara de forjar
– Salve, meus primos – saudou a deusa. – Sabeis se alguém esteve na sala desde que vosso pai descobriu o furto?
– Ninguém, com certeza – respondeu o herói divinizado. – Meu pai convocou-me no mesmo momento e estive de guarda até meu irmão trazer a nova tranca.
– Tocaste em algo, primo? Devolveste ao lugar algum objeto caído ou recolheste algo que não pertencia a este lugar, talvez?
– Não, minha cara. Apenas cuidei que ninguém entrasse.
– Deixai-me então examinar a sala, primo, para procurar algum indício do sacrílego. Têmis, a quem Zeus poderoso encarregou de restaurar a ordem, delegou-me investigar o furto e identificar o culpado.
O filho de Alcmena consultou Hefestos com um olhar suspeitoso. O divino ferreiro enxugou o suor da testa e confirmou:
– Assim foi, atendi à convocação e isso mesmo se passou.
Sem largar a tranca, o mais querido filho de Zeus deu de ombros e lhe fez com a cabeça um sinal para entrar. Agastada com a desconfiança, Icnaia entrou sem lhe agradecer e agachou-se na soleira. Seu olhar de águia percebeu como as vastas sandálias do pai dos deuses haviam sutilmente marcado uns poucos grãos de pó sobre o piso. Estivera ali três vezes desde a última faxina, há cerca de sete dias, que ela mesma supervisionara. Da última vez, caminhara indignado à alta parede na qual estivera pendurada a égide e retornara de imediato, sem nada tocar. Não percebia nenhuma outra marca recente e seu olfato apurado não reconheceu nenhum odor além dos esperados. Se alguém estivera ali à noite, fora muito rápido e não pisara o chão. O que era perfeitamente possível, pois muitas divindades podem voar ou metamorfosear-se em aves.
Adiantou-se e examinou ganchos e prateleiras, comparando-os mentalmente com a última vez em que havia estado ali em busca de outra espécie de pista. Eureca! Faltavam as Asas de Arce e as pegadas mostravam que Zeus não as tocara nos últimos dias. Furioso, deixara de notar a perda de um tesouro pouco importante para ele, mas certamente não para quem se arriscara a levá-la junto com uma égide já bastante conspícua.
Na Titanomaquia, Arce fora a fiel mensageira de Cronos e seus titãs, enquanto Íris, sua irmã gêmea, servia a Zeus e seus aliados. Com a vitória dos olímpicos, suas asas – duas grandes nas costas, duas menores nos pés, como as de Icnaia – lhe foram arrancadas pelo próprio Trovejante, que a arremessou com seus mestres ao Tártaro.
Séculos mais tarde, as asas menores foram presenteadas à ninfa Tétis, com a sugestão de aplicá-las de forma sutil e invisível aos pés do filho e torná-lo o mais veloz dos aqueus. Quando os pés rápidos deixaram de salvar Aquiles do seu destino mortal, Íris resgatou as asas da pira funerária, como lhe fora ordenado. Desde então, jamais haviam sido usadas, tanto quanto Icnaia sabia – e poucas coisas lhe passavam despercebidas no Olimpo.
O pavão de Hera não voaria longe, a águia de Zeus estava fora de cogitação, o abutre de Ares não conseguiria voar dentro daquele salão. Uma ave pequena não carregaria ambas as coisas. Voar com um dos tesouros para um esconderijo distante, retornar para levar mais outro ao mesmo lugar e retornar a tempo de estar presente à convocação de Zeus, em uma só noite, seria impraticável para a pomba de Afrodite ou a coruja de Atena, até para o falcão de Apolo. Quem podia voar em forma humana? Ela mesma, Nêmesis, Hermes, Íris, Nike, Hipnos, Eros, Tânatos, Kairos, Eos, Astreia, Zéfiro, Harpias...
Não tinha tempo para uma investigação exaustiva. Quem seria a virgem ofendida por Zeus no tempo de Leda? Claro que não ela mesma, mesmo que fosse virgem à época. Era mortal, filha de mortal, ambos há muito no reino de Hades. E qual divindade se arriscaria tanto por uma filha humana ou ninfa? Havia de ser uma deusa e o pretenso vingador seria seu pai, mãe ou irmão, salvo se fosse a própria.
Podia excluir Eos, os ventos, Eósforo e Héspero, que haviam estado com ela na festa de Hélios e Selene. Nike e seus irmãos? Servidores fiéis de Zeus, o certo era pô-los no fim da lista de suspeitos, assim como as Harpias. Íris? Igualmente improvável. Eros? Não era de seu feitio meter-se em questões tão sérias. Kairos? Nascera depois do tempo de Leda, por que se arriscaria por uma história antiga? Hipnos? Ele, sua mãe e seus irmãos eram misteriosos, não podia excluí-los. Hermes? Possível. Demonstrara desde o berço seus dotes de trapaceiro e ladrão. Tinha duas filhas divinas tidas como virgens, Palestra e Angélia. Nunca se revoltara contra o pai, mas se o próprio Apolo, certa feita, deixara-se convencer a rebelar-se por Hera, junto com Posídon....
Zeus era bem capaz de violar uma deusa virgem. Fizera isso com Hera, sua irmã mais velha, para forçá-la a tornar-se sua esposa. Com ele, só as próprias filhas podiam se sentir totalmente seguras... ou pelo menos assim supunham. Mas se aquilo fora tão secreto, como perguntar-lhe? E qual a ligação da virgem com o desconhecido usurpador? Sobre este, só podia supor que era muito jovem e acabara de ganhar asas, além da égide. Era pouco para oferecer a Zeus em troca da resposta a uma pergunta tão perigosa.
Decidiu primeiro investigar Hermes, uma das hipóteses mais lógicas e menos difícil de perscrutar. Por sete dias e noites seguidos, esbaforiu-se a segui-lo à distância, acompanhando-o em suas lides. Viu-o sussurrar mensagens divinatórias a adivinhos, divertir-se à larga com um bando de ninfas, acompanhar sombras privilegiadas ao Hades, nada fora da rotina. Nada indicava estar preocupado ou envolvido em atividades secretas.
Dedicou outros tantos dias e noites a acompanhar suas filhas. Palestra dedicava-se com humor e energia ao atletismo, derrotando jovens heróis na luta e no pugilato sem dar nenhum sinal de preocupação com qualquer outra coisa. De qualquer modo, não lhe parecia provável Zeus ter-se interessado por aquela deusa musculosa e andrógina, bem capaz de responder a atenções indesejadas do próprio Trovejante com um pontapé decidido em lugar sensível. Investigou depois Angélia, encontrando-a ocupada em atividades habituais, como a de proteger mensageiros, embaixadores e arautos, principalmente os encarregados de dar más notícias aos poderosos. Fosse ela mais poderosa, a própria Icnaia lhe pediria proteção, mas era tão jovem e delicada...
Seguiu depois, com mais cautela, Tânatos, Hipnos, Morfeu e outros da prole de Nix. Todos seguiam seus hábitos, sem dar mostras de participarem de algo mais importante. Éris espicaçava as mútuas suspeitas dos olímpicos sobre o caso, mas nela isso era costumeiro. Haveria mais razões para suspeitas se ela agisse de outra forma. Os demais se concentravam em suas tarefas junto aos mortais.
Com o tempo já a se esgotar, Icnaia decidiu correr o risco e enfrentar o senhor do Olimpo. Revelou-lhe o oráculo, pediu perdão por não ter deslindado sozinha o mistério e pediu-lhe o esclarecimento necessário para salvar a ordem divina e seu próprio reinado. Receava uma reação irritada, mas não se preparara para a tempestade que viria:
– Como ousas interrogar-me? Lesma inútil, cabeça de esterco, como rastreadora não vales um ânus de ratazana! Que o usurpador, seja quem for, venha e me enfrente se for capaz!
Lançou-lhe um relâmpago, mas de tão furioso errou o alvo, coisa jamais vista. Atingiu uma das colunas do próprio palácio e a desfez em cinzas, criando uma oportuna cortina de fumaça. O pequeno e veloz Kairos, o momento oportuno, veio ver o que se passava com o pai. Icnaia, perplexa, agarrou-o pela longa mecha da testa, antes que lhe voltasse a nuca raspada. O mais jovem dos deuses, surpreso e assustado, voou para fora a toda velocidade, arrastando-a para longe. Ela esbarrou de leve em Tique, que lhe sorriu e de repente viu-se ao ar livre. Safou-se do Olimpo com quantas asas tinha e cruzou o Egeu em meio a uma madrugada fresca e brumosa.
***
Ofegante, Icnaia ocultou-se em uma gruta junto a uma baía da Jônia. Sentou-se sobre uma pedra, o cotovelo apoiado no joelho gracioso, queixo fino sobre a mão pequena, fechada e tensa, tentando meditar sobre o que acontecera. Como podia Métis, a prudência de Zeus, ter-lhe falhado em um momento tão crítico? Que erro teria o Trovejante outrora cometido a ponto de preferir arriscar seu trono a revelá-lo à sua investigadora?
Tantas hipóteses e nenhuma maneira de testá-las. Por Zeus! Se voltasse a se expor a céu aberto, ele não voltaria a errar e a atiraria, queimada e mutilada, às trevas do Tártaro. Pouco importava quantas centenas de vezes ela lhe prestara valiosos serviços, a começar pela guerra com os Titãs, na qual ela repetidamente se arriscara ao seguir os rastros de seus poderosos inimigos e deslindar seus planos.
De qualquer modo, pouco mais podia fazer. O fatídico eclipse já se aproximava. O mais seguro era tomar forma humana e ocultar-se entre os mortais até o vencedor se definir e serenarem os ânimos no Olimpo, embora isso pudesse levar séculos. Ou milênios.
Icnaia lembrou-se de quando Atena disfarçara-se em mendiga quando quis surpreender Aracne e decidiu fazer o mesmo, para caminhar à cidade próxima e misturar-se a seus habitantes sem chamar a atenção. Foi como um velha enrugada, encanecida e desdentada, coberta com um pano esfarrapado, apoiada em um bastão, carreando um velho pote de barro para coletar esmolas, que Icnaia capengou pela estrada, com um ou outro olhar de esguelha para o céu para certificar-se de não estar sendo notada.
Recebeu olhares de desprezo dos guardiões da muralha, mas não a impediram de entrar. Era uma cidade próspera de ruas bem planejadas, largas e retas. Manquitolou até a praça do mercado e acocorou-se ao lado de seu pote de barro, a recitar a cada passante uma súplica humilde.
Entre muitos resmungos e o tilintar ocasional de uma moedinha de cobre, notou uma excitação incomum na multidão. Será que a ira de Zeus já era sentida ali, tão longe? Ou mercadores trariam notícias das terras ao pé da montanha sagrada, onde os relâmpagos continuavam a despencar do azul? Apurou os ouvidos.
Para sua surpresa, não se falava de Zeus nem do Olimpo, mas de um mortal que anunciara um eclipse para o final da tarde. Alguns riam dele, contando a história de como o lunático, distraído a olhar o céu, caíra em um buraco e pedira socorro a um camponês, que o resgatara do poço, sujo e contundido. Apostavam que ele erraria.
Outros aceitavam o desafio. Lembravam o ano em que o sábio cansou-se de ser criticado por perder tempo com teorias em vez de ganhar dinheiro. Usou seu conhecimento da natureza para prever fartura de azeitonas no verão e tomou dinheiro emprestado para alugar barato todas as prensas de azeite da região e da vizinha ilha de Quios. Ao chegar a colheita, necessitaram-se de todas as prensas, e ele as sublocou pelo preço que quis, tornando-se de um só golpe um dos homens mais ricos de Mileto – apenas para mostrar que podia enriquecer quando quisesse, embora sua ambição fosse de outra monta.
Icnaia admirou-se. A cinqüenta estádios dali, estava Didima, um dos oráculos de Apolo, mas o deus nunca revelava seus segredos com tanta precisão. E naquela cidade não havia oráculos, nem mortal com suficiente sangue divino para ter acesso aos planos dos deuses...
O burburinho de repente mudou para um sussurro. Vinham três homens, a conversarem como amigos. O do meio era certamente o objeto das especulações. Moreno, de barba e cabelo curtos, menos de quarenta anos, tinha aparência comum, salvo pelo nariz adunco, decerto herdado de ancestrais fenícios. Usava uma túnica de bom linho, com certo desleixo. Mas Icnaia reconheceu em seu olhar uma inteligência aguda e superior, que o punha bem acima da média dos mortais – e até de muitos imortais.
Curiosa, esqueceu de recitar sua ladainha quando os homens passaram por ela. Mesmo assim, o narigudo deteve-se para lançar-lhe um olhar compassivo e deixar um óbolo de prata no pote. A deusa lembrou-se de agradecer.
– Por favor, dá-me teu nome e eu suplicarei aos deuses por uma vida longa para ti!
– Sou Tales, filho de Hexâmias – respondeu, indulgente –, mas poupa teu tempo, pois os deuses com certeza têm outros assuntos para se ocupar.
– Ah, mas sempre temos a esperança de que nos ouçam.
– Sim, a esperança é o único bem comum a todos os humanos. Mesmo aqueles que nada têm ainda a possuem – e fez menção de afastar-se.
– Tales, posso fazer-lhe uma pergunta? – O atrevimento de interpelá-lo chamaria atenção, receou Icnaia. Mas intuía estar na pista de algo muito importante e já aprendera a não de deixar escapar o momento propício e agarrá-lo pelos cabelos.
Tales deteve-se, curioso. – Claro, minha senhora.
– É verdade o que se diz, que vaticinaste o escurecimento do Sol?
– Sim, previ um eclipse pouco antes do entardecer.
– Esse augúrio foi-te inspirado por algum deus?
– Não sei se me entenderás... mas isso me foi ensinado pela observação dos astros e o estudo de seus caminhos. Pelo engenho e operação da razão, nada mais.
– Pode a mente humana querer antecipar os passos dos deuses, meu senhor? Não mudariam eles seus planos apenas para ridicularizar quem lhes pretende ditar leis?
Tales sorriu, confiante.
– Nada é mais ativo que o pensamento, pois atravessa todo o Universo. E nada é mais forte que a necessidade, pois tudo a ela se submete. Inclusive os deuses. Pois não estão todas as coisas cheias de deuses? – E lhe piscou um olho.
Sobressaltada, Icnaia pensou que ele lhe descobrira o segredo. O sábio despediu-se com um gesto afável e afastou-se antes que ela decidisse o que responder. Passado o susto, ela percebeu que ele não quisera ser literal. Mas mesmo assim, era espantoso.
Há milênios, Zeus condenara Prometeu a uma tortura sem fim por roubar-lhe o segredo do fogo e entregá-lo à humanidade, tornando-a menos dependente. Mas sua antiga façanha fora uma mera travessura, se comparada com ensinar os mortais a compreender e prever os atos dos deuses. Com tal poder, os humanos mais cedo ou mais tarde os reduziriam a meros adornos, se não a servos. Ante tal revolução, até a queda do deus-pai pareceria um assunto menor, pensou, enquanto mais moedinhas lhe caíam no pote.
Não adiantaria mais calar Tales. Ela bem sabia como de nada serve punir o mensageiro de más notícias. Ele estava certo e outros o seguiriam. Alguma divindade traíra os imortais, mas quem? Aproveitou uma moedinha para comprar cerejas e resmungar com o vendedor sobre como os deuses já não eram respeitados como antigamente.
– É verdade! – Concordou o fruteiro. – Onde já se viu, roubarem o próprio Apolo!
Soube então do sumiço de uma imagem de ouro maciço do oráculo em Didima, na mesma noite do sumiço da égide. A coincidência de data era, no mínimo, interessante. Se fora um ladrão mortal, a rota de fuga teria passado por Mileto. Dali poderia embarcar onde deuses gregos pudessem ser derretidos sem gerar um processo por sacrilégio.
Restavam algumas horas para o eclipse e Icnaia decidiu aproveitá-las no porto, tomando uma forma masculina e usando as moedinhas para divertir-se com os marinheiros e sondá-los por boatos significativos. Por fim, um bêbado lhe perguntou algo curioso, enquanto jogavam os astrágalos:
– Aposte mais, meu velho. Não acreditas nos presentes de Tique?
– A deusa da fortuna? Claro! – respondeu, intrigada, sob o disfarce de mendigo bêbado e barbudo. – Mas há que cuidar-se deles, pois Nêmesis anda na sua cola para conter seus abusos e punir a felicidade imerecida.
– Nem sempre. No mês passado, um sujeito chegou de madrugada, com uma arca pesada debaixo do braço, aflito por um navio pronto para sair. Por acaso, um navio mercante que devia ter partido para Cartago na manhã anterior tinha se atrasado, mas já desfazia as amarras. O próximo só sairia depois de dias. O capitão aceitou levá-lo pela tarifa habitual. Poucas horas depois, chegaram mensageiros de Didima avisando do roubo das estátuas. Uma trirreme chegou a partir em busca do ladrão, mas não o alcançou.
– Mas como sabe se era mesmo ele e se foi bem-sucedido e se não lhe tomaram o ouro?
– Cheguei hoje de Cartago, onde todos já sabem da história. O larápio já é dono de um pequeno palácio, cheio de escravas belíssimas. Conta a quem queira ouvi-lo que Tique lhe sorriu em sonho e lhe disse para aproveitar a oportunidade única. Ela aprovava sua ousadia, queria premiá-lo avisando que, naquela noite, Nêmesis não a seguia... Ele pulou da cama no mesmo instante, roubou a estátua de ouro maciço com a qual sonhava há anos e cavalgou na mesma noite para o porto, com o saque e a roupa do corpo.
Ao ouvir aquilo, Icnaia sentiu-se gelar e pulou para a saída. O jogador protestou:
– Ei, não acabamos a partida!
– Tu ganhaste. Fica com as moedas! – Gritou para o perplexo marinheiro.
Ao se ver fora da vista de humanos, Icnaia retomou a verdadeira normal e alçou vôo. Acreditava ser seu dever fazer uma última tentativa de avisar Zeus, mesmo com o risco de ser fulminada por ele, mesmo pensando ser já tarde demais para fazer diferença. Já ia a meio caminho, quando Nêmesis lhe barrou o caminho, estalando seu látego.
– Para trás, Icnaia! – Bradou. – Nada mais podes fazer! Zeus pagará por seus abusos!
Icnaia sacou a adaga, disposta a enfrentá-la. Mas sentiu cair sobre si uma rede invisível e indestrutível, como aquela com a qual, outrora, Hefestos aprisionara a esposa Afrodite em flagrante delito com Ares, para expô-los ao escárnio dos demais olímpicos. Imobilizada, caiu sobre a ilha de Esquiro, vendo Hipnos voar na direção do Olimpo após lhe lançar a rede. Atordoada da queda e ainda presa, viu a tia aproximar-se e a interpelou, tristemente:
– Mentiste que passaste aquela noite atrás de Tique. Foste tu! Mas por quê?
– Porque aquele devasso não se conteve nem mesmo ante a deusa da vingança! – Irou-se Nêmesis – Perseguiu-me por meio mundo, enquanto eu tomava as mais diferentes formas para fugir, com a esperança de vê-lo interessar-se por outra. Mas qual! Só um oráculo que o prevenisse contra um filho capaz de depô-lo do trono seria capaz de conter sua obsessão. Descansei alguns dias no rio Eurotas, disfarçada de gansa, mas ele me descobriu, tornou-se cisne para se aproximar sem ser percebido e me violentou!
– Tia! Mas não foi Leda quem ele atacou nessa ocasião?
– Ela também! Zeus, mal me largou, viu-a lavar-se na margem, saltou sobre ela sem se dar ao trabalho de mudar de forma. A pobre mulher ficou aterrorizada! – Indignou-se Nêmesis – Quando Zeus se foi, estava aos prantos. Voltei à forma divina, acalmei-a e lhe expliquei o que acontecera. Ela e o rei Tíndaro ocultaram minha vergonha e me abrigaram no palácio até o fim da gravidez. Com muita dor, pus o ovo do qual nasceram Cástor e Helena. Leda, no mesmo dia, pôs outro, de cuja casca saíram Polideuces e Clitemnestra. Ela assumiu a maternidade de todos e voltei ao Olimpo como se nada acontecera...
Devia ter adivinhado já então, pensou Icnaia. Nascerem quatro filhos de um mesmo coito era improvável e que dois imortais, Cástor e Helena, nascessem do intercurso de um deus e uma mortal era inédito. Semideuses são mortais, por notáveis que sejam. Mas ela quis acreditar, como os outros, que tal prodígio era possível. Uma lição a ser ensinada a seus descendentes, se acaso os tivesse: quando se exclui o impossível, o que resta, não importa quão improvável pareça, é a verdade.
– Mas essa vingança é excessiva! – Protestou, desanimada. – Por um excesso de Zeus, tu e teus cúmplices punireis todos os olímpicos, escravizando-os aos mortais!
– Não será assim. Livre dos caprichos desse prepotente, todos viveremos melhor e com mais justiça. Tu nasceste depois da derrota dos Titãs e conheceste apenas a versão dos vitoriosos. Mas acredita em mim, que vivi na época de Cronos, quando os humanos viviam sem tristezas, aflições e penosos trabalhos e só diferiam dos deuses por serem mortais. Não éramos menos felizes, muito pelo contrário!
– É isso que pretendeis? Restaurar a Idade de Ouro? – Disse Icnaia, cética.
– Não, os humanos tornaram-se demasiado inteligentes e complexos para viverem nus nas matas, satisfeitos com os frutos espontâneos de Gaia. Caminharemos, sim, para uma nova era, mas muito mais rica e sábia. Chame-a de Idade de Diamante, se lhe aprouver. Homens e mulheres chegarão às estrelas, serão como deuses e deusas e a verdadeira justiça por fim se estabelecerá! – Entusiasmou-se.
– Com os humanos? Isso é impossível! Nem em dez mil anos!
– Mesmo que fosse, ainda assim não seria justo não tentar, minha sobrinha. Nossos planos se estendem por mais de três mil anos. Se quiseres, terás um lugar na nova era. Ao contrario do Trovejante, Poros, o Engenho, não é vingativo e saberá apreciar tua astúcia e dedicação, se quiseres servir à nova ordem. Quero ter-te ao nosso lado, pois a Justiça e a Punição de nada servem se não forem guiadas por uma prudente Investigação.
– Poros! Esse, então, é o nome do filho de Métis!
Nêmesis arregalou os olhos. – Parabéns, não perdeste teu talento. Como descobriste?
Icnaia suspirou. – Não me cumprimente, fui lerda. A natureza da nova divindade só ficou óbvia para mim em Mileto, quando vi um mortal prever os caminhos dos deuses. Devia ter percebido, quando Astreu mencionou um filho da conjunção de Zeus consigo mesmo, que a profecia de Gaia por fim se cumpria.
– Sim, é o filho do Trovejante e de sua primeira esposa. Ah, pobre Métis, como pôde o amor cegar uma deusa tão sábia? Quando Zeus se propôs a derrotar o pai e libertar os irmãos, ela concebeu o plano que forçou Cronos a regurgitar seus filhos e aconselhou seu amado na guerra contra os Titãs, certa de estar colaborando para um futuro melhor. Seu prêmio foi ser engolida pelo marido, grávida, assim que Gaia profetizou que seu segundo filho seria mais poderoso que o rei dos deuses. E mesmo assim, ela continuou a aconselhá-lo dentro de suas entranhas até abandonar as esperanças de que Zeus a quisesse como algo mais do que instrumento de seu poder e seus prazeres!
– E ela ainda pariu Atena, que abriu caminho para o mundo rachando a cabeça do pai. Mas como Métis pôde ter um segundo filho?
Nêmesis soltou uma risada assustadora, a primeira em milênios.
– Queres os pormenores sórdidos? Então te contarei como Métis deixou de aconselhar Zeus a manter a compostura quando Ganimedes, seu amante, ridiculamente ou desafiou a imitá-lo em sugar o próprio membro...
– Basta! – Gritou Icnaia, consternada. – Imagino Hipnos a inspirar-lhe um sono tão profundo que não notou o segundo filho nascer-lhe da cabeça...
– Exatamente, depois que o induzimos a exaurir-se em uma noite . Eu mesma recolhi Poros e o levei à corte da rainha da Noite, para ser criado por minha mãe no extremo ocidente, junto aos cimérios e longe de Zeus. E ei-lo que volta! – Bradou Nêmesis. Satisfeita, a deusa da vingança apontou para o poente, onde uma figura alada se destacou por um rápido instante contra o Sol, cujo eclipse já se iniciava.
A deusa da vingança voou ao encontro de Poros, juntando-se a seu cortejo de seres alados e estranhos carros voadores sem cavalos em fulminante assalto ao Olimpo. Seguidos relâmpagos partiam do cume para atingirem, inócuos, a égide indestrutível, talhada do couro da cabra Amalteia. O usurpador respondeu com um raio de tipo jamais visto, um feixe de luz cegante, em linha reta para a morada dos deuses. O Icnaia não pôde ver mais da batalha, mas já não duvidava de que era a última vez que o sol se punha sobre o reino de Zeus e que a própria Nike, a Vitória, se juntaria às hostes inimigas antes do final.
***
Muito depois, Icnaia meditava junto a um fiorde margeado de álamos dos quais brotava o âmbar, junto a seu amante. Fora sua a escolha. O vitorioso Poros propusera-lhe, como a todos os olímpicos salvo Zeus, unir-se aos vitoriosos. Fora das poucas a recusar: sua honra não lhe permitia servir ao novo senhor se o próprio Zeus não o fizesse ou a dispensasse do juramento de fidelidade. Para sua surpresa, Poros não a jogou ao Tártaro: deixou-a escolher um exílio na Terra, de onde poderia voltar quando mudasse de ideia.
Até onde ela sabia, só mais um dos deuses ainda recusava fidelidade ao novo senhor do Olimpo: Héracles, que escolhera viver entre os durotriges da Bretanha, à margem do rio Cerne, com a esposa Hebe. Além do próprio Zeus, desterrado na oriental ilha de Crise, povoada só por grifos e dragões, junto a Hera que, surpreendentemente, decidira acompanhá-lo. Ela quis estar ao lado dele sem ter de disputá-lo com outras fêmeas, pensava a rastredora, sem saber se isso amenizava ou agravava o tormento do rei deposto.
Poros era mais sereno e generoso que o antigo amo. Quando não mais precisou das asas, devolveu-as a Arce, que libertou junto com os Titãs. Tanto quanto sabia a exilada, ele era fiel à esposa com a qual se unira, até então a mais humilde e desprezada das deusas: Penia, a Pobreza, agora mãe de Eros Porimos – um deus do amor bem diferente de Eros Lusimeles, o filho de Afrodite – e da bela Sofia, a Sabedoria. Ao contrário de Zeus, que jamais teve qualquer projeto além de manter-se no poder, Poros parecia ser sincero em seus planos para conduzir deuses e humanos a uma era de felicidade ilimitada.
Humano, demasiado humano, na opinião de Icnaia. Continuava a receá-lo, pois para ele os fins justificavam quaisquer meios. O pouco que ela soubera de seus esquemas incluía guerras e revoluções apavorantes, como o mundo jamais conhecera – embora também incluíssem figuras absurdamente pacifistas, com o pensador indiano que ele inspirara ao pé da árvore Bodhi, dois grandes sábios chineses, um em Loyang e outro em Qufu, e muitos filósofos gregos e profetas semitas por vir.
Receosa da tortuosidade e aparente fragilidade desses planos, Icnaia escolhera uma terra que ainda permaneceria mais de mil anos fora deles. Disfarçara-se como humana e era relativamente feliz como vidente e feiticeira entre os anglos da vila de Heathe, às margens do fiorde Slien, na terra dos Hiperbóreos. Conquistara um dos mais belos e sagazes guerreiros anglos da região, Holmr Hrethelson, e ainda se passariam muitos anos antes de que ele começasse a suspeitar da imutável juventude da amante e ela precisasse procurar outra aldeia.
De pé junto à margem, de mãos dadas ao amante, olhava para seu filho Scaerllocc, um pequeno semideus de cabelos louros cacheados. O garoto brincava com os amigos. Imbatível no esconde-esconde e na caça ao tesouro, era inteligente e sagaz como a mãe. Sim, pensou ela, Scaerlocc Holmson daria origem a uma longa linhagem de investigadores. Não era preciso perguntar a nenhum oráculo.
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Antônio Luiz M.C. Costa é editor e colunista da revista CartaCapital, contista, romancista e referência entre autores de Ficção Especulativa. Em breve, a entrevista com ele aqui na SAMIZDAT.
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