Sempre que ocorria alguma discussão em casa por causa de comida - quem comeria a última bolacha do pacote, ou a última fatia de pizza, ou o bife que havia sobrado -, minha mãe ressuscitava uma história de sua infância.
Contava ela que, quando criança, durante um jantar, houve uma briga entre ela e as irmãs por causa duma coxa de frango. Minha avó interveio, mas nenhum consenso foi possível. No entanto, depois de muito arranca-rabo, minha mãe e as irmãs descobriram que a coxa de frango havia desaparecido.
— Foi o Saci — sentenciou minha vó — o Saci viu a briga e veio pra instaurar a desordem.
Quem não conhece a figura do Saci não deve ter tido infância. Personagem presente nas obras de Monteiro Lobato, na série de TV "Sítio do Pica-Pau Amarelo" e até em gibis de Maurício de Souza, é um mito tradicional do folclore brasileiro: o negrinho perneta, gorro vermelho e cachimbo na boca. Dizem as lendas que ele adora roubar pertences das pessoas e que faz tranças nas crinas de cavalo; é um menino travesso.
Assim, toda a vez que sumia alguma coisa em casa, eu e minha irmã imediatamente repetíamos a sabedoria de vovó:
— Foi o Saci.
Não se tratava de acreditar ou não na existência dele, mas sim porque era algo que fazia parte de nossa criação e que era um tanto engraçado, mas isto até a viagem que fizemos para o sítio de vovó.
Viajar para o interior não era o meu programa favorito, mas era a obrigação de todo Natal e Ano-Novo. Durante a maior parte do tempo, permanecíamos na casa da minha avó na cidade, mas, por um dia ou dois, íamos também para o sítio dela, onde preparávamos um churrasco e podíamos pescar.
As crianças - eu, minha irmã, primos e primas - ficávamos todas acomodadas num dos quartos da velha casa de madeira e dormíamos em beliches. Logo ao chegarmos lá, alguém comentou, ao ver a tinta descascada na porta do nosso quarto:
— Olha, parece a figura do Saci.
E realmente parecia muito mesmo: da cintura para cima, havia uma silhueta na tinta descascada que mostrava o quadril, os bracinhos, a cabeça, o capuz e até o cachimbo. Era o Saci, só que sem perna (onde a tinta não havia descascado ainda).
Ninguém deu muita importânci ao fato, no entanto, à noite, após todos terem ido dormir, ouvimos um sussurro no nosso quarto das crianças; era minha prima nos chamando:
— Gente, olha lá pra porta!
E, como era de se esperar, havia a silhueta descascada do Saci, contudo, havia dois novos elementos: agora ele tinha a perna única e, aparentemente, saía fumacinha do cachimbo dele.
Todos ficamos apavorados, afônicos, tremendo embaixo dos lençóis.
De quando em quando, alguém, que estava de olhos fechados, perguntava:
— Ele ainda está lá?
Então um de nós era obrigado a enfrentar o medo e constatar que o Saci ainda estava lá, fitando-nos, fumando seu cachimbo.
Na manhã seguinte, este foi o assunto em casa, todos pondo a mão no fogo ao afirmarem que tinham realmente visto o Saci durante a noite. Para reforçar nossa certeza, a porta de casa havia sido encontrada aberta. Especularam que havia sido vovó quem havia saído, à noite, para ir ao banheiro (que era no quintal), mas ela jurou de pés juntos que não tinha acordado de madrugada. Portanto, indubitavelmente, era o Saci quem havia entrado.
Pareidolia é um termo usado para definir este tipo de fenômeno psicológico, quando a mente interpreta certos dados como sendo significativos e os relaciona a outros.
Pode até ser isto que ocorreu naquela noite, mas como nos convencer que não havíamos visto, de fato, o Saci, ou que não era obra dele o sumiço da coxa de frango de minha mãe?
Isto porque a explicação mais plausível nem sempre é a melhor explicação.
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