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sábado, 13 de setembro de 2008

Imperfeição

I. Na livraria

Nunca gostara de contos de terror. A sua aversão era devida a uma capacidade imaginativa forte que o tornava vulnerável, gerando mal-estar físico para lá da insónia que aflige o comum dos mortais. Por isso, é com alguma surpresa que entra na livraria e dá por si espreitando sobre o ombro do homem que folheia. Antes de fixar o olhar, ainda pensa que poderia ter arranjado melhor forma de “matar” o tempo enquanto a Margarida não chega.

O homem que espreita, André, é mais um daqueles aviões de voo de rota falhada, está a pagar caro o rigor desleixado com que sempre encarara os outros na vida profissional e relações familiares. Nunca fora de “engolir sapos” e calar. Mas também jamais conseguira entender o valor de respeitar as devidas hierarquias e proporções. Daí o mal-entendido com o chefe do chefe, originando chamada repentina ao gabinete do subordinado deste. O discurso, cheio de palavras bem escolhidas incluía as frases que não deixavam margem para dúvidas - Lamento muito mas não existem condições para continuares. Seria mau para nós e ainda pior para ti – dissera o “chefinho” com ar preocupado, pleno de comiseração.

Em casa a sorte não fora melhor. Depois do início fulgurante, a relação com Matilde foi arrefecendo, resistindo como podia à erosão do tempo e ao seu muito mau feitio e excessos ocasionais. Aconteceu o mesmo de muitas vezes - os dois lados seguram a corda e vão puxando, puxando. Julgam que dará sempre para mais um pouco. Até que quebra de forma mais ou menos inesperada. Naquele dia, chegado ao apartamento deu com o nada, o vazio. Mais tarde um SMS informou lacónico da “ida para casa dos meus pais”. Não te preocupes, levei a Margarida, depois o meu advogado contactar-te-á – disseram de forma aparentemente despreocupada as letras pequeninas, redondas, do aparelho.

Entretanto aproveita e vai lendo, de boleia. O companheiro não deu pela sua presença e avança interessado para a uma das histórias – Perseguição implacável. Vem-lhe à lembrança algo. Em silêncio volta atrás no tempo e conta a si mesmo tudo. Desde o início.

 

II. Dos incríveis acontecimentos da semana passada

Talvez fosse a solidão, talvez a utilidade do dinheiro extra. Só sabe que dá por si folheando os anúncios do vespertino, a vista percorrendo linhas em ziguezague, os olhos atentos a qualquer oportunidade. E foi assim que encontrou o insólito que se lhe cabia e assentava como uma luva. Rezava o texto “O candidato deverá ser homem de meia-idade, bem-parecido, desempregado e livre. São quinhentos euros para um 'casting' ”. Ligou, nervoso e seguiu à risca as indicações, a coisa ficava lá para o bairro da Lapa, bem perto da Rua das Trinas.

O apartamento era direito de terceiro andar e a campainha, de tão ineficiente por certo seria muda ou cansada. Estava quase a voltar para trás quando aconteceu

“André Valadares?” perguntou a voz

“Sim, sou eu”

O outro som retorquiu, indo de trás

  “Olhe, não nos conhecemos mas existe algo que lhe quero propor. Vale bem quinhentos euros. Ah... pode chamar-me Ana.”

Virou-se e viu-a. Alta loira e elegante, óculos escuros da moda, devia andar pelos seus trinta e cinco. Vestia de forma prática, impecável a combinação das cores.

Seguiram em silêncio por duas ou três ruas até encontrarem a porta do apartamento pequeno, quase quarto e sala. No meio, a mesa posta e o ambiente romântico sugerido pelo par de velas não causavam estranheza ao homem baixo, um tailandês entroncado que vestido a rigor se preparava para servir “Quinta da Bacalhoa” com todos os requisitos de cerimonial.

“Faça o favor de sentar”, disse outra vez a voz. Anuiu. Sentaram-se e deram início à conversa.

A curiosidade da anfitriã era enorme e avançava e alcançava, casava bem com a sua solidão. De tal modo que ficou a ver com espanto o desfilar despudorado da sua vida, ao ritmo e toque das palavras que eram lançadas e deixadas à sorte - umas atrás das outras. Passaram os anos da infância feliz e despreocupada, os tempos de Universidade de borgas e amores e professores austeros. Passou a morena tímida que se chamava Matilde e estudava biologia e a festa onde proferiram ambos os votos solenes e cortaram o bolo e beberam champanhe cruzado após inaugurarem a pista de dança com uma valsa. Passou uma barriga linda em crescendo que, chegado dia do parto se esvaziou na felicidade de pegar o rebento rosado e chorão. Chamar-lhe-iam Margarida – nome da avó materna. E chegaram depois, enfim os tempos maus. As dificuldades, as discussões, o acomodar mútuo, a incompreensão partilhada. Chegou o dia que tinha marcado os sentimentos da sua vida mais recente. E quando atingiu este ponto, subitamente, olhos húmidos, a voz perdeu a força, calou-se. Tinha passado uma hora cheia, ele ali a falar, falar, falar. À sua frente a mulher escutava atenta. De vez em quando parava e baixava o olhar para tirar anotações no caderno.

“Senhor, obrigado pelo seu tempo, aqui tem” Estendeu-lhe o envelope com dez notas de cinquenta.

Tinha tirado de si e lançado para a frente todos aqueles guardados de baú de ser. E agora sentia-se mal, desconfortável, triste. Bem, pelo menos tinha ganho algum dinheiro! Se fossem necessárias mais histórias... – pensou. Estava neste diálogo interno, consigo mesmo quando foi invadido pelo torpor e seu corpo cedeu aos truques de um vinho bom mas adulterado.

São seis da madrugada quando acorda e ergue o olhar. À sua volta, o grupo de adolescentes com ar rufia segura os dois “Pit Bull”. O que parece mais velho avança e diz

“Ouve lá, cota. Aqui é tudo gente boa, do melhor. Por isso vamos fazer um trato contigo.”

“Hum... que trato, onde estou?” em frente via o descampado da lezíria. Ao fundo, a uns bons quatrocentos metros. A cerca de arame era interrompida por um portão.

“A gente quer ver como corres, se és como o Obiquelo. Por isso vais fazer uma corrida aqui com os meus dois primos” os primos olhavam ansiosamente, expectantes, dente afiado, língua de fora.

O magricelas de óculos saiu do meio do grupo. Encarou-o, mirando-o de baixo a cima e disse.

“Hei, assim não vale. O gajo está em tão boa forma que os animais não terão a menor hipótese. Vamos ter de desgasta-lo um pouco.”

Formaram um círculo de onde choveram pontapés e murros, transformando-o ao fim de uns minutos naquela massa física desgraçada que implorava descanso. Olhou para cima mesmo a tempo de ver o “caixa de óculos” sorrir e dizer

“Agora sim, o avozinho já está em pé de igualdade.” sorriu trocista “Mas se ele for bom desportista damos-lhe uma pequena vantagem. Façam-lhe a pergunta.”

A mente confusa começou a imaginar testes possíveis à memória – Quem eram os “cinco violinos”, qual foi o ano em que o Boavista ganhou o seu primeiro campeonato, qual era o nome do recordista mundial do triplo salto, todas estas questões surgiram se candidatando. Mas quando soube ao que vinham, descobriu como se tinha enganado e avaliado mal os interlocutores. Os putos estavam para o desporto como para a história aquele aluno que em visita ao Museu do Azulejo, perante o painel magnífico da Lisboa pré-terramoto de 1755 pergunta à “sotora” onde estava pintado o estádio do Belenenses. Agora a pergunta era simples: Qual dos três grandes era o melhor?

Foi fácil acertar na resposta. Premiaram-no com uma vantagem de duzentos metros, foi lançado para a frente. E correu como um louco, não se atrevendo a olhar para trás. E chegou a pensar que ia conseguir. O portão estava já tão perto, quase ao seu alcance quando algo agarra e puxa a perna esquerda. Decorre uma fracção de segundo após a qual sente o osso a partir como se fosse mero bambu de um qualquer canavial. Mas não se preocupa com isso nem com o sangue que jorra livre e desgovernado dos vasos sanguíneos dilacerados. Preocupa-se sim com o segundo primo, o qual o alcança também, atacando num ápice. Ainda coloca as mãos, protegendo a face de investidas sucessivas das mandíbulas que abrem e fecham e puxam e rasgam. Mas a dor aumenta e é impotente para resistir mais tempo à vaga violenta que avança e não recua, que encontra finalmente o ponto vital, partindo o pescoço, separando-o em duas metades, finando-o nesse divórcio físico. Antes de se ir ainda consegue ouvir ao longe a voz da loira a dizer – Muito bem, rapaziada, aqui está a vossa parte. Agora é comigo. Isto nunca aconteceu. Nem um pio.

 

III. De volta ao livro

Continua a ler. Para descobrir o quanto o personagem principal lhe é familiar. Alto lá - a boca abre-se de espanto. É ele, elezinho ali escarrapachado, pregado palavra a palavra em página de papel. Com todos os detalhes. Horrorizado observa o sorriso satisfeito do leitor que fecha o volume e se dirige decidido para o balcão. O livro é excelente, o conto tão verosímil e cheio de sensações. Ah... e aquela personagem tão bem descrita, tão real... vai comprar. Tem de comprar.

Então o homem chamado André passa de surpresa grande a tristeza maior, convencendo-se finalmente sobre o seu estado actual. Sabe agora que a Guidinha não virá pois o ele físico também já não é. E sente a dor imensa dos que são e ao mesmo tempo não são, que ainda recordam a vida que foi mas já nada podem fazer.

Ainda grita desalmado um “é pá, não gastes o dinheiro em porcarias, essa gaja é um embuste, é uma vampira, uma assassina”. Sem qualquer sucesso. Afinal de contas ele é ainda fantasma principiante. E não será certamente para principiantes a capacidade de causar manifestações físicas perceptíveis, chamando a atenção dos vivos.

 

IV. Epílogo

A mulher loira que não se chama Ana está à varanda de seu apartamento de luxo na zona nova da cidade – o Parque das Nações. Bebe um vodka a golos espaçados enquanto enche o olhar com a actividade bela e caótica dos que chegam e que vão junto aos jardins na margem do Tejo. É uma “contista” das boas, os seus contos prendem a atenção do leitor desde o primeiro momento. Mas como qualquer autor, não é perfeita. O seu calcanhar de Aquiles é a criação de personagens adequadas, verosímeis. Porém, com o método engenhoso que encontrara a imperfeição era eliminada de forma eficaz fazendo com que o problema nunca aparecesse aos olhos do leitor. Ao que parece, o seu livro mais recente, uma colectânea de histórias de terror e acção onde podemos encontrar títulos como “Tortura fatal”, “A morte dos gémeos inocentes”, “Acidente premeditado” e “Perseguição implacável” está fazendo muito sucesso.

Liliana, contista possuidora de imperfeição fatal sorri de sorriso triunfante. Observa o sol que se põe vagaroso, ao longe - por detrás da colina e tenta imaginar como serão os próximos textos. Sabe que não serão contos de amor.

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