Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sábado, 17 de maio de 2008

Unicórnio Perdido em Janeiro


Slavko Zupcic
Tradução: Henry Alfred Bugalho


Para Ana Bella Guillén

Nunca pude observar como havia chegadoseu estojo envolto em papel de presente ou num pano de fina seda. Certamente, sempre esteve ali, sua caixa negra revestida internamente de seda vermelha, perto da biblioteca de casa, na mesa posta ali apenas para sustentá-lo. Algo natural e certo como as poltronas da sala de estar, ou como o retábulo russo da Virgem no quarto de minha irmã, mas maravilhoso e imponente ao mesmo tempo.

Deve ter sido depois, após três ou quatro ano de estadia vigiada por mim na biblioteca de casa, que me foi concedido o privilégio de desvelar o conteúdo do misterioso estojo e segurar em minhas mãos o violino Antonius Stradivarius, Cremona, feccit anno 1731. Se alguma vez havia sido apenas um móvel de respeito, dez vezes maior do que um livro, mas muito menor que um piano, agora de tratava dum Stradivarius guardado religiosamente no estojo de couro negro que eu limpava todas as tardes com pano azeitado, não importando que eu não soubesse, na verdade, o significado de seu nome. Logo, uma enciclopédia esclareceria tudo para mim repentinamente: “Antonius Stradivarius, incomparável fabricante de violinos, n. em Cremona (1644?—1737)”.

Dois ou três anos mais tarde, começaram os estudos de violino no Conservatório. Recebia aulas dum ancião polaco de sobrenome Sienkewicks com outro violino, bonito também, mas nunca como o magnífico Stradivarius de casa. Era uma pena não poder levar nosso tesouro ao Conservatório e ter de fazer os exercícios de precisão com o pequeno Guarneri de minha tia. De qualquer modo, o professor Sienkewicks pôde conhecê-lo assim que concluídas as aulas do curso primeiro.

Ainda me lembro seus braços erguendo-o, segurando-o. Sua barbicha afixada na madeira de cedro. E me lembro de sua voz.

— É tão suave. Não faz falta uma espaleira para tocá-lo.

Entretanto, suas mãos acariciavam as cordas lentamente, um pouco antes de procurar o arco na parte superior do estojo e começar a tocar, repentinamente, os mais belos compassos de Mendelssohn de seu Concerto em Mi menor.

Sua visita marcou o início de minhas apresentações. Cada vez que, depois desta noite, chegava alguma visita em casa, minha irmã me convidava a tocar violino no meio da sala. Eu caminhava lentamente pelo corredor rumo à biblioteca, abria a porta do cômodo, acendia a luz sempre à esquerda, alcançava a mesa de mogno e me detinha por cinco ou dez segundos contemplando o estojo. Retirava cuidadosamente o pano que o cobria, dobrava-o com calma, abria a fechadura com a chave que me havia sido entregue previamente e alçava o violino. Uma voz soava no cômodo ao lado, eu saía cerimoniosamente da sala e a visita respondia, surpreendida:

— Um Stradivarius, um Stradivarius.

Era como se nenhuma outra coisa no mundo importasse além do maravilhoso troço de madeira que minhas mãos carregavam.

Logo se aproximavam lentamente, sem se atreverem a tocá-lo.

Para mim, bastava tocar duas ou três peças e pronunciar logo algumas palavras.

— Antonius Stradivarius nasceu em Cremona...

Foi num momento como este, cinco anos depois da primeira apresentação, que um dos visitantes, por acaso engenheiro musical, levantou-se de seu assento e se atreveu a tocar com suas mãos o violino, antes de pronunciar a terrível sentença.

— Não é um Stradivarius. É uma imitação.

Isto antes de explicar que a madeira do tampo não era de faia, nem de bordo, e outras coisas que preferi me esquecer, simplesmente porque a partir deste dia, apesar de o violino, seu estojo e a delicada chave dourada me terem sido entregues definitivamente, nunca voltei a ser chamado para tocá-lo na sala, nas horas de visita.

Fonte: Ficción Breve Venezolana

Sobre o Autor
Slavko Zupcic (Valencia, 1970) é um psiquiatra e escritor venezuelano. Praticou vários gêneros literários. Entre suas obras, destacam-se a dramática evocação da figura paterna em Dragi Sol, o tom escatológico da noveleta Barbie e as peripécias duma peculiar detetive em Giuliana Labolita: El caso de Pepe Toledo. Seus contos constam em diversas antologias de contos venezuelanos e latino-americanos.
Fonte: Wikipédia

Share




0 comentários:

Postar um comentário