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terça-feira, 13 de maio de 2008

Terra estranha


"Se não te vi e não reparei, foi apenas por
não permaneceres comigo o tempo suficiente."
I

A nave prosseguia veloz, rodopiando sobre o eixo, cortando espaços, preenchendo com o corpo metálico em forma de disco um trajecto previamente programado. Na altura certa, sem mais nem menos um milésimo de tempo, chegaria ao solo e estabeleceriam contacto com toda a suavidade que a (alta) tecnologia tornava possível.

Chegaram sem grande surpresa. A convocatória chamou toda a equipa para a reunião na sala oval. Dispensados grandes formalismos, reuniram-se os escolhidos e, em silêncio, juntaram-se corpos, colocando-se as mentes em sintonia. Um único objectivo, que era claro: efectuar as derradeiras verificações de modo a prevenir falhas. A incumbência do pequeno grupo era vital, da maior importância para a comunidade.

“Ide em paz, que o Deus Bola vos proteja” Disse a voz do velho, erguendo bem alto o apêndice - espécie de mão - direito.

O tempo observou-os com dolência enquanto seis corpos verdes saíam, protegidos por fatos especiais, iniciando incursão num meio desconhecido e potencialmente adverso. A equipa, sendo pequena mas bem qualificada, possuía tudo o que era necessário: Dois soldados, quatro chefes, um navegador, um médico, um cientista e um linguista.

O silêncio era interrompido apenas pelo diálogo mental contínuo, interior e omnipresente “Que iriam encontrar? Seriam os indígenas hostis ou amigáveis? Poderiam fixar ali nova colónia?”. De repente vieram à memória do primeiro chefe algumas experiências passadas, falhanços passados. Destes, o pior fora o desembarque na segunda lua de Tritan. Se nada permitiria prever os problemas também é certo que não tinham tomado todas as precauções. Resultado: um terço dos efectivos mortos, milhares com invalidez permanente. Após o descalabro das batalhas tiveram de assumir a derrota e bater rapidamente em retirada.

Decorridas quinze mil unidades de tempo, após muito calcorrear chão igual, sempre branco e duro e liso, encontraram o primeiro obstáculo. Era um objecto grande e alto, de cor castanha e com um formato rectangular. “Um momento. Como deparamos com um artefacto alienígena e potencialmente perigoso, vamos parar e conferenciar. Comunicarei com a base e então decidirei o que fazer em seguida” Disse o primeiro chefe ao segundo, o qual disse “Alto. Devido a um perigo potencial, vamos parar aqui” ao terceiro, que por sua vez disse “Atenção. Ninguém avance, pois parece haver perigo eminente” ao quarto, o qual se limitou a dizer “Atenção soldados. Vamos parar um pouco. Depois, quando retomarmos a marcha, serão pedidos dois voluntários.”
Era necessário tomar uma decisão. As escolhas não eram muitas. Poderiam ignorar a coisa, limitando-se a contornar o enorme artefacto ou, em alternativa, optar por escalar, subir ao cimo e obter mais informações. Como quase sempre acontece, o dilema que se colocava era entre arriscar ou ficar…

Arriscaram arriscar para, ao subir, deparar com um cenário ainda mais estranho: a superfície lisa e transparente. Ao fundo, muito ao fundo, imagens enormes alternavam e espalhavam recortes de cor. Lentamente, muito lentamente - permanecendo cada por umas boas cem unidades de tempo.
II
Tinham passado três gerações naquela terra que era estranha, sem dúvida, mas farta e generosa, por certo. O novo lar fornecia sem qualquer renitência ou hesitação o ar, a água e os alimentos. Sem encontrar quaisquer outros viventes e não conhecendo diferente vida animal (hostil ou amigável), a fixação da colónia fora fácil e bem sucedida.
III
Inês tinha chegado da escola, estava ainda de uniforme e com a sacola no ombro. Afundou-se na superfície do sofá de pele e estendeu as pernas. Á sua frente, a mesa de centro e a televisão. Na mão, o comando comprido e negro, cheio de botões pequenos. Sobre os azulejos brancos, no lugar onde deveria estar o tapete de arraiolos, arfando, o monte de pelo - pequeno Yorkshire. Premiu. “Você e Hiper-Centro, uma vida bem por dentro”. Premiu. “Agora, com Viagens-Fernandes, tudo o que sempre sonhou”. Premiu. Jardim dos amigos. Premiu. Genérico de série. Deixou ali, no canal com a série sobre o pobre diabo Paraguaio.

Deu um salto ao ouvir o barulho da chave na fechadura, sinal de pai que entraria, voltando do trabalho. Derrubou a garrafa de Coca-cola, inundando em fracções de segundo o pequeno cinzeiro de vidro e destruindo toda uma civilização que nunca teria a oportunidade de conhecer. Desde o momento inicial da descida tinham passado exactamente três minutos e vinte segundos.

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