Ostentava
Virgínia um olhar de abismal e cósmica depravação, efeito de sobrancelhas tão
assombrosas em seus contornos quanto as sinuosidades das galáxias; e de olhos
arregalados como astros cuja iluminação, ao invés de eclipsar os corpos
celestes, evidenciava a graça de suas formas e traços; e, também e por último,
de lábios delineados por vermelhos como a cauda dos cometas.
Enfim, ostentava
um rosto de pervertida.
Tal
caráter ninguém acusava, nem os amigos, com receio de ofenderem-na, nem os
inimigos, com receio de, mediante a verdade, despertarem-na para transformações
benéficas a ela e inconvenientes a eles. Pois malgrado a máscara do vício não
representasse um erro si, tampouco a obscenidade, aliados e adversários
reconheciam em sua face o pecado original, nossa sina de uso e abuso, estigma
discernido em percepções efêmeras e meditações sigilosas, temorosos eles de manifestar
as íntimas ponderações e apreciações de valor e, pela via e vida das palavras,
identificar princípios não agradáveis e alusivos à si.
Alheia à
expressão era a própria Virgínia, e em sua narrativa interior ela descrevia-se como
casta e correta, adepta do ascetismo, modelo nem tanto de moralidade como de
insanidade, afinal desconsiderava os seus melhores instintos ao almejar uma
existência de abnegações e renúncias, de fastidiosos meios-termos. E era alheia
a despeito do habitual contemplar-se no reflexo de espelhos ou no confinamento
das fotografias, do assistir-se nas filmagens de um casamento em que valsava
com os primos, na pista e no semblante a desfilar com os lábios entreabertos e
vermelhos, olhos ornados por rímel, o quadril além das curvas. Não aferira sua
condição de pervertida nem ao analisar os numerosos e impudicos sonhos e o
permanente fantasiar, reputando-os como resultado das mais saudáveis, e
superiores, psicologias.
Mas o
recorrente existir acua-nos frente à verdade, e apesar de Virgínia, no passado,
furtar-se às evidências e depreciar as graças do acaso, logrou a sorte última
de convergirem as circunstâncias para o reconhecimento precoce de sua
devassidão. E assim descobriu-se impressa na fotografia de um jornal: a imagem apresentava
um casal de idosos e, em segundo plano, imprecisa em curvas, Virgínia. Ou
melhor, na cena percebia-se somente Virgínia a despeito do enfoque nos vetustos
bailarinos, como se numa concordância de equívocos competisse à silhueta
revelar seu caráter de libertina.
A visão da
imagem e a epifania resultante ocorreram no café da manhã seguinte. Lambia a
manteiga do dedo quando abriu o periódico e reconheceu-se na fotografia.
Virgínia ingeriu a revelação, lançou as folhas no mero ar. Deus dos céus,
alarmou-se ela. Não sou assim, não fui assim; mas sou. Como, indagou ela, como
jamais vira-se em sua verdadeira face, e à mente assomou-lhe a recordação das
ilusões de óticas que, se desmistificadas, jamais retornavam à condição de
enigma.
Ergueu-se.
Antes
graciosa qual os felinos de seus sonhos, então movimentou-se com outra
sensualidade, consciente de suas muitas curvas e graças e do libidinoso
potencial da carne. Nos aposentos da casa não se ouvia vivalma, e na rua o
silêncio sobrepunha-se ao cotidiano. Frente ao espelho do quarto, olhou-se, e ao
olhar-se mal se percebeu, como se houvesse nela o de sempre, o mesmíssimo, e
agora evidente, sempre. Virgínia encarou-se, confidenciou ao reflexo.
Vadia, eu
sou uma vadia.
Sentia-se
plena.
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