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sábado, 22 de julho de 2023

O Voyeur Espectral

 


Era a rotina, e não era. Pois há no belo uma resistência ao hábito, uma oposição ao costume, e conquanto Eva, antes de dormir, abrisse as persianas da janela e peça a peça despisse-se para os céus e o luar, sua figura proporcionava às estrelas um espetáculo sempre intenso e sempre deslumbrante. Descomunal, o firmamento e as virtudes da menina-mulher, dela menciona-se a pele cor de âmbar, os olhos de felina fugidia, a macia fragilidade do pescoço. Com vinte e sete anos, prevalecia sobre a natureza e os estigmas do tempo. De corpo apresentava os quadris carnudos e a famélica cintura, envolvida ela, Eva, por uma incandescência proveniente de seus contornos – e se não fosse um único, e imperdoável, defeito, haveria de figurar nos adornos da mitologia qual Helena de Tróia moderna.

Ah, se não fosse o meu dedinho do pé...

Mas o dedinho de Eva é matéria pertinente aos domínios de outra estória. Nesta realça-se o fato de ela, como parte do ritual noturno, desnudar-se perante a janela. Residia em um apartamento onde, por ser o espaço residencial mais alto da cidade, sua privacidade não era violada ou ameaçada – e na cobertura da torre gêmea em frente os aposentos existiam em abandono. Peça a peça ela despojava-se de suas limitações, da camisa e da calça e das meias, peça a peça provocava os astros, e apesar de despir-se com certa distância do vidro, gostava de fantasiar-se espiada, admirada e desejada, fetiche cujo estímulo proporcionava-lhe afluxos de prazer.

Desde a mudança para o apartamento dedicava-se ao strip-tease noturno quando – numa noite de lua cheia e de nuvens afiladas e sinistras, vestida somente com as roupas íntimas – surpreendeu-se ao vislumbrar, na cobertura da torre-gêmea vizinha, na janela defronte a sua, a brasa de um cigarro acender-se, cintilar, apagar-se. Eva correu, saltitou por cima da cama e fechou a persiana. Venceu a madrugada assim, solitária e confinada, circunscrita aos preceitos do cimento, e ao abrir o quarto para a manhã, vestida e penteada, apoiou-se no peitoril e melhor observou a habitação adjacente. Iluminada pelo sol, distinguiu os aposentos vazios, a ausência de móveis, a indefectível pintura das paredes, e por julgar-se enganada, por julgar a visão do cigarro fantasma como efeito do sono ou do desejo, voltou a despir-se para o infinito, à noite, como era de seu feitio.

Desceu a calça jeans e, atenta ao apartamento oposto ao seu, viu a brasa acender-se, cintilar e, prestes a apagar-se, evidenciar a errônea silhueta de um rosto. Enfurecida, de calcinha e sutiã, Eva caminhou até a janela e, com sinais de mão, ofendeu quem porventura ocultava-se na escuridão e no silêncio. Depois, fechou a persiana, ligou o ventilador de teto e, deitada, entregou-se à consideração do vento. Por um mês resistiu ao chamado do nu, por um mês enfrentou o seu pendor exibicionista, e, contudo, não foi o fetiche, sequer o desânimo, o fundamento da visita à torre-gêmea vizinha – mas sim o medo e sua irmã, a curiosidade. Omitiu ao porteiro os pormenores de seu interesse em conhecer a cobertura, e ao homem revelou tão somente um entusiasmo comercial.

Minha prima pretende se mudar, justificou.

Em silêncio, subiram de elevador até o último piso. Eva, contida em movimentos, excedia-se em olhares suspeitos. Pois não seria ele o tarado? E quais ações tomar ao adentrar o apartamento? Quais sinais de presença humana observar? Lamentava a impulsividade de sua índole quando o elevador abriu. Saíram os dois, e no corredor as lâmpadas acenderam-se. Calado e taciturno, o porteiro puxou um molho de chaves do bolso, demorou-se até encontrar o segredo correspondente à fechadura. No corredor o tilintar do metal assemelhava-se ao entrechocar de lâminas num faqueiro. Desimpedida a porta, do umbral Eva examinou o assoalho, e o sol e sua consciência não distinguiram, na manta de pó sobre o chão, pegadas, rastros ou resquícios de cinzas de cigarro, nada que indicasse presença humana  ou material. Ao aproximar-se de uma das janelas e contemplar o próprio apartamento, a pele arrepiou-se. Melhor ir embora, disse ela, avessa ao inusitado e ao insólito. No corredor, rejeitou o conhecimento e a memória das câmeras de vigilância: muito tempo se passara, e o objeto de seus temores não era afeito ao espaço.

Em casa, consolidou o olhar no alto da torre-irmã, e na face de Eva a descontração dos músculos e o alheamento dos lábios indicava alívio ou aceitação. Antes de dormir, retomou o ritual de strip-tease e despiu-se com vagar e elegância, entregue em sacrifício, enquanto na última janela do prédio em frente a brasa de um cigarro cintilava e a fumaça conspirava um sorriso.


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Erik K. Weber
Gaúcho.






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