Era a
rotina, e não era. Pois há no belo uma resistência ao hábito, uma oposição ao
costume, e conquanto Eva, antes de dormir, abrisse as persianas da janela e
peça a peça despisse-se para os céus e o luar, sua figura proporcionava às
estrelas um espetáculo sempre intenso e sempre deslumbrante. Descomunal, o
firmamento e as virtudes da menina-mulher, dela menciona-se a pele cor de âmbar,
os olhos de felina fugidia, a macia fragilidade do pescoço. Com vinte e sete
anos, prevalecia sobre a natureza e os estigmas do tempo. De corpo apresentava
os quadris carnudos e a famélica cintura, envolvida ela, Eva, por uma incandescência
proveniente de seus contornos – e se não fosse um único, e imperdoável,
defeito, haveria de figurar nos adornos da mitologia qual Helena de Tróia
moderna.
Ah, se não
fosse o meu dedinho do pé...
Mas o
dedinho de Eva é matéria pertinente aos domínios de outra estória. Nesta
realça-se o fato de ela, como parte do ritual noturno, desnudar-se perante a
janela. Residia em um apartamento onde, por ser o espaço residencial mais alto
da cidade, sua privacidade não era violada ou ameaçada – e na cobertura da
torre gêmea em frente os aposentos existiam em abandono. Peça a peça ela
despojava-se de suas limitações, da camisa e da calça e das meias, peça a peça
provocava os astros, e apesar de despir-se com certa distância do vidro,
gostava de fantasiar-se espiada, admirada e desejada, fetiche cujo estímulo
proporcionava-lhe afluxos de prazer.
Desde a
mudança para o apartamento dedicava-se ao strip-tease noturno quando – numa
noite de lua cheia e de nuvens afiladas e sinistras, vestida somente com as
roupas íntimas – surpreendeu-se ao vislumbrar, na cobertura da torre-gêmea vizinha,
na janela defronte a sua, a brasa de um cigarro acender-se, cintilar,
apagar-se. Eva correu, saltitou por cima da cama e fechou a persiana. Venceu a
madrugada assim, solitária e confinada, circunscrita aos preceitos do cimento,
e ao abrir o quarto para a manhã, vestida e penteada, apoiou-se no peitoril e
melhor observou a habitação adjacente. Iluminada pelo sol, distinguiu os
aposentos vazios, a ausência de móveis, a indefectível pintura das paredes, e
por julgar-se enganada, por julgar a visão do cigarro fantasma como efeito do
sono ou do desejo, voltou a despir-se para o infinito, à noite, como era de seu
feitio.
Desceu a
calça jeans e, atenta ao apartamento oposto ao seu, viu a brasa acender-se,
cintilar e, prestes a apagar-se, evidenciar a errônea silhueta de um rosto.
Enfurecida, de calcinha e sutiã, Eva caminhou até a janela e, com sinais de
mão, ofendeu quem porventura ocultava-se na escuridão e no silêncio. Depois,
fechou a persiana, ligou o ventilador de teto e, deitada, entregou-se à
consideração do vento. Por um mês resistiu ao chamado do nu, por um mês
enfrentou o seu pendor exibicionista, e, contudo, não foi o fetiche, sequer o
desânimo, o fundamento da visita à torre-gêmea vizinha – mas sim o medo e sua
irmã, a curiosidade. Omitiu ao porteiro os pormenores de seu interesse em
conhecer a cobertura, e ao homem revelou tão somente um entusiasmo comercial.
Minha prima
pretende se mudar, justificou.
Em
silêncio, subiram de elevador até o último piso. Eva, contida em movimentos,
excedia-se em olhares suspeitos. Pois não seria ele o tarado? E quais ações
tomar ao adentrar o apartamento? Quais sinais de presença humana observar?
Lamentava a impulsividade de sua índole quando o elevador abriu. Saíram os
dois, e no corredor as lâmpadas acenderam-se. Calado e taciturno, o porteiro
puxou um molho de chaves do bolso, demorou-se até encontrar o segredo
correspondente à fechadura. No corredor o tilintar do metal assemelhava-se ao
entrechocar de lâminas num faqueiro. Desimpedida a porta, do umbral Eva
examinou o assoalho, e o sol e sua consciência não distinguiram, na manta de pó
sobre o chão, pegadas, rastros ou resquícios de cinzas de cigarro, nada que
indicasse presença humana ou material. Ao
aproximar-se de uma das janelas e contemplar o próprio apartamento, a pele
arrepiou-se. Melhor ir embora, disse ela, avessa ao inusitado e ao insólito. No
corredor, rejeitou o conhecimento e a memória das câmeras de vigilância: muito
tempo se passara, e o objeto de seus temores não era afeito ao espaço.
Em casa,
consolidou o olhar no alto da torre-irmã, e na face de Eva a descontração dos
músculos e o alheamento dos lábios indicava alívio ou aceitação. Antes de
dormir, retomou o ritual de strip-tease e despiu-se com vagar e elegância,
entregue em sacrifício, enquanto na última janela do prédio em frente a brasa
de um cigarro cintilava e a fumaça conspirava um sorriso.
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